A derrota de Kamala Harris foi a derrota de uma campanha que demonizou até o eleitor do adversário
A votação que traz de volta Donald Trump à presidência da República nos Estados Unidos virou festa para a direita brasileira. A família mais exultante tem sido a dos Bolsonaro. Jair, o patriarca e ex-presidente, e os filhos congressistas Flávio e Eduardo vieram a público para profetizar que a eleição norte-americana profetiza o que virá no Brasil em 2026. Será mesmo?
O próprio Bolsonaro já declarou que quer ter restituído seu direito de disputar as próximas eleições presidenciais. Por enquanto, segue impedido por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O ex-presidente também anda dizendo que aprendeu a lição do erros que cometeu como encher o Planalto de militares e não políticos. Indica que quer fazer as pazes com a política, mesmo discursando aos seguidores que é o único antissistema da direita.
Bolsonaro vê num esperado apoio futuro de Trump como agente de pressão externa para as coisas mudarem por aqui. Do passaporte bloqueado ao direito de ter o nome de novo da urna. Pode estar sonhando com o improvável. Hoje, de fato, isso é. Não se tem notícia de que um presidente estrangeiro, ainda que da maior potência do Ocidente, tenha poder para fazer magistrados mudarem seu voto. Mas ainda há bastante tempo para o rio correr e contextos e cabeças reavaliarem suas posições.
Não conta ele, no entanto, com o agravamento de sua própria situação se houver mais provas resgatada no celular de subordinado apontando que Bolsonaro agiu deliberadamente para urdir um ato, não consumado, de baixar decreto anulando eleições e fechando o País e a democracia para balanço para impedir a posse do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2023.
Mas o espírito que reina entre a direta, de uma maneira geral, e os bolsonaristas, em especial, é de festa por outros motivos. A derrota de Kamala Harris foi também a derrota de uma campanha que pintou o adversário como uma ameaça às instituições democráticas. Como relata o colunista do The New York times, o jornalista Bret Stephens, os democratas fizeram uma campanha demonizando não só Trump, mas qualquer conservador que ousasse não enxergar que Kamala era a única saída possível para os EUA. Todo e qualquer eleitor de Trump pareceu ser enquadrado como fascista e outras coisas que tais. E esse, segundo Stephens, teria sido um dos erros do Partido Democrata norte-americano.
Por aqui, a esquerda também dá sinais de ainda não ter aprendido a lição de compreender o voto conservador. Os mais intransigentes gostam de pintar o eleitor que reage ao PT como contaminado pelo dito fascismo inflamado de Bolsonaro. Esquecem que tem gente que pode ver o mundo de modo diverso. Sob o prisma conservador, algumas das pautas petistas podem soar como pecado ou coisas do gênero.
O sinal mais evidente pode ter vindo do votante na capital paulista. Na cidade de São Paulo, onde o presidente da República escolheu um candidato à prefeito com alto índice de rejeição e claramente à esquerda até dos esquerdistas do PT, muita gente deixou de bancar a aposta de Lula por considerá-lo fora dos padrões conservadores. E os gestos finais de Guilherme Boulos em direção aos evangélicos, por exemplo, parecem não ter virado votos.
Para 2026, temos as esperanças de Bolsonaro de voltar ao mundo dos elegíveis e Lula e o PT diante do desafio de que não basta só chamar o oponente de proto-ditador para se manter no comando do País. Num cenário eleitoral em que o adversário seja outro nome da direita, insistir no discurso de que vem ai é uma nova ameaça à democracia pode levar os petistas a repetir os erros dos democratas.
Por Estadão