Pontífice mantinha foto de transexual argentina assassinada por um cliente em escrivaninha para não esquecer o que muitas delas enfrentam cotidianamente

“Todos somos iguais aos olhos de Deus.” A frase dita pelo Papa Francisco a uma mulher trans que havia perdido a fé é lembrada com carinho e dor por um grupo de prostitutas trans acolhidas pelo líder da Igreja Católica nos arredores de Roma. Elas lamentam profundamente a morte do pontífice e relembram a acolhida que tiveram graças ao apoio direto dele.
Latino-americanas e migrantes, as colombianas Yuliana e Diana e a uruguaia Marcela viviam da prostituição em Torvaianica, uma vila perto de Roma, quando a pandemia de Covid-19 chegou. Sem clientes, passaram a enfrentar fome e abandono. Mas a vida delas começou a mudar quando procuraram ajuda na paróquia do padre Andrea Conocchia.
Ao ver a fila de pessoas desesperadas, entre elas mulheres trans, o religioso procurou o esmoleiro do Vaticano, cardeal Konrad Krajewski, pedindo apoio. Com o aval do Papa, a ajuda veio rapidamente — e mudou destinos.
As mulheres queriam agradecer pessoalmente ao Papa e escreveram cartas com suas histórias. Francisco, ao saber do pedido, surpreendeu: “Não quero que venham quatro, mas todas”, respondeu por meio da irmã Geneviève Jeanningros, que atua há mais de 50 anos em ações com prostitutas e transexuais de rua.
A partir dali, o contato se tornou constante. Durante três anos, as mulheres se encontraram com o Papa nas audiências das quartas-feiras. “Alguns colaboradores se afastavam quando a gente chegava. Mas ele era sempre afetuoso e divertido, adorava fazer piadas”, contou Marcela ao jornal El País. “A Igreja se abriu muito com Francisco, e muitas de nós que não tínhamos lugar encontramos acolhimento.”
Elas relatam que o Papa escutava atentamente, fazia questão de demonstrar afeto e dava conselhos espirituais. “Na primeira vez que o vi, eu disse que tinha perdido a fé. Ele me respondeu dizendo para eu não deixar isso acontecer”, contou Marcela.
Francisco também patrocinou abrigos para mulheres trans vítimas de abuso na Argentina e deu aval ao início de ações semelhantes na Itália. Segundo o Movimento Identidade Transexual, entre 7 mil e 8 mil migrantes trans — muitas delas brasileiras, colombianas e peruanas — vivem da prostituição no país.
O Papa, inclusive, mantinha na escrivaninha de seu escritório a foto de Naomi Cabral, uma mulher trans argentina assassinada por um cliente perto de Torvaianica. “Não queria esquecer o que muitas de nós enfrentam”, disse Marcela. “Há pouco tempo também mataram Lili, uma companheira peruana. Cravaram uma chave de fenda na nuca dela e a abandonaram no bosque onde pelo menos 40 mulheres trans trabalham.”
No próximo sábado, um grupo de migrantes, pessoas trans e seis detentos autorizados a deixar a prisão farão parte da cerimônia que receberá o caixão de Francisco na Basílica de Santa Maria Maior, onde ele escolheu ser sepultado.
Por Mais Goiás