Na manhã de terça-feira (8), por volta das 10h, uma série de mensagens e vídeos começou a circular com intensidade em grupos de WhatsApp. Em poucos minutos, o tema se alastrou como pólvora: “Correios patrocinam turnê de Gilberto Gil com R$ 4 milhões mesmo operando no vermelho” era uma das chamadas que encabeçavam os disparos.
O monitoramento da Palver em mais de 100 mil grupos públicos de WhatsApp e Telegram identificou que a difusão foi coordenada —os vídeos foram disparados em massa, com horários similares, nos mesmos canais que frequentemente impulsionam pautas da extrema direita.
As estatísticas revelam um crescimento explosivo da propagação dessa desinformação entre os dias 7 e 9 de abril, com um aumento de 1.400% no volume de menções e compartilhamentos do tema. O pico ocorreu no dia 9, com 83% das menções associadas ao patrocínio dos Correios à turnê de Gil e 38% ao plano de saúde da empresa.
O motivo do ataque? O patrocínio dos Correios à turnê “Tempo Rei”, de Gil, foi anunciado no mês anterior. Mesmo sendo prática comum no setor de marketing cultural —e historicamente aplicada por governos de diferentes espectros políticos— a parceria foi usada como pretexto para alimentar uma narrativa maior: a de que artistas ligados à esquerda são favorecidos com recursos públicos.
No entanto, o episódio rapidamente ganhou contornos ainda mais absurdos. A ofensiva digital passou a conectar, sem qualquer evidência, o patrocínio da turnê ao tratamento de Preta Gil nos Estados Unidos. “Lula usou os Correios para pagar o tratamento da filha do amigo”, dizia um dos vídeos disseminados entre os grupos. Em outro, mais conspiratório, Preta era acusada de fazer parte de um esquema global de manipulação política com apoio de think tanks internacionais e da Usaid.
Após o impulsionamento inicial nas redes de WhatsApp, foi possível observar uma amplificação significativa do tema em plataformas menores, como blogs e transmissões de rádios regionais. A campanha utilizou diversas técnicas estabelecidas de desinformação. A falsa causalidade, como afirmar que a crise nos Correios é causada pela turnê de Gil, ignora a separação orçamentária. A distorção de fatos, como alegar que Gil receberá R$ 4 milhões, omite as contrapartidas e a realidade do patrocínio cultural. Apelos emocionais, como vídeos simulando cancelamento de planos de saúde, tentam gerar empatia falsa, enquanto ironias, como “os Correios agora entregam militância”, buscam ridicularizar a situação.
O movimento ilustra, mais uma vez, como estratégias de difamação digital se estruturam em três tempos: primeiro o conteúdo viraliza em redes fechadas, depois é replicado em canais que se apresentam como “alternativos” ou “independentes”, e, por fim, chega aos grandes influencers e políticos, já com o narrativa de que “algo precisa ser feito”.
Em 1997, na música “Pela Internet”, Gilberto Gil celebrava com entusiasmo as possibilidades do digital, cantando: “Eu quero entrar na rede, promover um debate, juntar via internet um grupo de tietes de Connecticut”. Em 2025, ele segue promovendo esses debates. A campanha anti-Gil, embora se apresente como uma crítica ao uso de verbas públicas, é, na verdade, mais um capítulo da guerra cultural, uma tentativa de silenciar figuras que representam a cultura de um Brasil progressista e democrático. A indignação fabricada não é sobre os Correios; era sobre quem tem o direito de ser celebrado.
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