Opinião | Por que tanta gente acredita em mentiras que ameaçam a própria saúde – Blog Folha do Comercio
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Opinião | Por que tanta gente acredita em mentiras que ameaçam a própria saúde

de admin
Homem protesta contra as vacinas em passeata nos EUA -
Homem protesta contra as vacinas em passeata nos EUA – Foto: reprodução

Em 1995, no início da minha carreira, quando os jornais ainda imprimiam cadernos inteiros destinados a um assunto, participei de um deles, dedicado ao avanço dos “supervírus” e das “superbactérias”. Hoje, três décadas depois, o assunto continua em alta, potencializado pela desinformação.

Como repórter de Ciência da “Folha de S.Paulo”, entrevistei diversos profissionais de saúde para aquele especial. Lembro de um infectologista me dizer que “chegará um dia em que surgirá um vírus que não conseguiremos combater”.

Acredito que esse dia chegou em 2020 com a pandemia global de Covid-19. O vírus SARS-CoV-2 ceifou milhões de vidas e colocou o mundo de joelhos, colapsando os sistemas de saúde de todos os países e impondo severas medidas de distanciamento social.

A situação só não foi mais dramática porque, na mesma época, o poder computacional já permitia que a inteligência artificial fosse usada na produção de vacinas. Essa tecnologia permitiu antecipar, com alta precisão, a estrutura tridimensional de proteínas virais, essencial para entender o comportamento do vírus e identificar alvos para os imunizantes. A IA também foi usada para projetar sequências mais estáveis e eficientes de RNA mensageiro, base de algumas das melhores vacinas atuais. Também serviu para simulações computacionais de testes clínicos, economizando tempo e recursos, e para prever novas variantes do coronavírus. Com isso, o tempo do desenvolvimento das vacinas, que costumava durar anos, caiu para poucos meses, salvando dezenas de milhões de vidas.

Em sentido contrário, muitas pessoas deliberadamente deixaram de se vacinar, por questões ideológicas. Essa decisão, que causou incontáveis mortes e atrapalhou a desaceleração do vírus na sociedade pela ação do imunizante, foi resultado da desinformação nas redes sociais, pelas falas de governantes e -pasmem- de alguns profissionais de saúde.

Vírus e bactérias possuem processos de evolução naturais, a partir de mutações. Porém, os seres humanos desempenham um papel crucial neles, com a automedicação ou usos inadequados de remédios.

Um erro clássico é o paciente parar de tomar um antibiótico assim que os sintomas da doença desaparecem, dias antes do determinado pelo médico. Isso permite que as bactérias ainda em seu organismo desenvolvam mais resistência à medicação.

As pessoas acreditam no que quiserem, e isso sempre foi muito forte na saúde. Por exemplo, na década de 1990, cresceu no Brasil a prática da urinoterapia, que prega que beber a própria urina ou aplicá-la no corpo poderia prevenir e curar doenças.

Seus defensores alegam que ela contém anticorpos, ureia e outros compostos que atuariam como uma “autovacina”. No entanto, não há estudos científicos que comprovem esses benefícios, e a urina contém substâncias que o corpo descarta por serem tóxicas ou inúteis. Reingeri-la pode causar problemas como gastrites, esofagites e úlceras.

Existem muitas outras pseudociências ligadas à saúde, como a ozonioterapia, que usa o ozônio para supostamente melhorar a circulação e combater infecções. Tampouco há estudos sérios que ratifiquem isso, e esse gás pode ser perigoso pela sua toxicidade.

As pessoas têm o direito de escolher como querem ser tratadas. Principalmente em situações de desespero, podem recorrer a tratamentos não-comprovados. Por isso, os pacientes não devem ser criticados.

Isso é muito diferente de autoridades, formadores de opinião e empresas que disseminam desinformação ligadas à saúde. Nesses casos, a prática ganha contornos criminosos, pois abusa de vulnerabilidades da população, podendo efetivamente matar pessoas.

Por isso, o desenvolvimento de um senso crítico afiado deve ser trabalhado desde os primeiros anos na escola, que também deve sempre reforçar o predomínio da ciência sobre crenças. Jornalistas, formadores de opinião e obviamente governantes e os diversos profissionais de saúde também têm um papel essencial para fortalecer a verdade.

Não dá para ficar desperdiçando tempo, recursos e energia contra a desinformação. Afinal, precisamos usá-los contra o avanço dos “supervírus” e das “superbactérias”. Mas essa patologia também precisa ser combatida.

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Opinião por Paulo Silvestre

É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.

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