A missão do general brasileiro que vai comandar as tropas da ONU cercadas por rebeldes no Congo – Blog Folha do Comercio
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A missão do general brasileiro que vai comandar as tropas da ONU cercadas por rebeldes no Congo

de admin

Ulisses Mesquita Gomes embarca no dia 8 para chefiar a Monusco em meio à ofensiva do M-23, que tomou as cidades de Sake e Goma, no leste da RDC, matou 17 capacetes azuis e cercou as bases da ONU na região

Não haviam passado 48 horas da queda de Goma, a maior cidade do leste da República Democrática do Congo (RDC), nas mãos dos rebeldes do movimento M-23, apoiados por tropas de Ruanda quando finalmente o Conselho de Segurança da ONU sacramentou a nomeação do general de divisão brasileiro Ulisses Mesquita Gomes para ser o comandante militar da Monusco, a missão das Nações Unidas de estabilização da RDC. Trata-se de uma única tropa dos capacetes azuis, pois tem o direito de usar a força – ao lado das Forças Armadas da RDC (FARDC) – para cumprir a missão: proteger civis na província do Kivu do Norte, área rica em minérios, que convive há 30 anos com o fantasma do genocídio e da limpeza étnica.

As forças de manutenção de paz da Monusco mantêm posições no Congo para proteger os civis na parte oriental do país: avanço do M-23 com apoio de Ruanda matou 17 capacetes azuis
As forças de manutenção de paz da Monusco mantêm posições no Congo para proteger os civis na parte oriental do país: avanço do M-23 com apoio de Ruanda matou 17 capacetes azuis Foto: Monusco/UN

Atualmente a Monusco conta com três brigadas e várias outras unidades de apoio, além de um estado-maior e de observadores militares. Seu efetivo total é de cerca de 10,5 mil militares – ela já teve cerca de 20 mil há pouco mais de dez anos, quando sob o comando de outro brasileiro, o general Carlos Alberto Santos Cruz, ela se envolveu em operações militares contra o mesmo M-23, retomando áreas que, agora, novamente caíram nas mãos dos rebeldes. Mas havia uma diferença então: não havia entre os rebeldes militares profissionais de Ruanda, como tampouco artilharia antiaérea, drones e até carro de combate, como agora foram empregados durante a conquista das cidades de Sake e Goma.

De acordo com o Escritório da ONU para Coordenação de Assuntos Humanitários, há uma “relativa calma” em Goma desde 28 de janeiro, após os intensos combates do M-23 com o exército congolês. “A água e a eletricidade foram cortadas desde o dia 26 e o acesso à internet interrompido desde o dia 27, dificultando os esforços de coordenação humanitária”, informou a ONU. Além disso, o aeroporto de Goma está fechado desde 26 de janeiro, com a suspensão do tráfego aéreo, incluindo carga humanitária e chegada e saída de pessoal. A RDC tem mais de 100 milhões de habitantes e abriga, segundo a ONU, “uma das piores crises de deslocados da atualidade, com mais de 6,5 milhões de pessoas afetadas”.

Mais de mil homens capacetes azuis estão agora cercados em suas bases em Goma, que chegaram a ser alvo de bombas e de tiros disparados pela artilharia e pela infantaria do M-23 entre os dias 26 e 27. Os capacetes azuis permanecem dentro de seus aquartelamentos, onde se refugiaram militares desarmados da RDC. Enquanto isso, manifestantes em Kinshasa, capital da RDC, atacaram no dia 28 as embaixadas de países que acusam de omissão diante da agressão patrocinada por Ruanda, entre elas a do Brasil. A Monusco, agora, está em uma encruzilhada: aguarda a manifestação do Conselho de Segurança da ONU e as negociações entre os rebeldes e o governo da RDC para saber seu destino.

O general Ulisses Mesquita Gomes, nomeado comandante da força da Monusco; para ele, a crise no Congo deve ter uma solução política
O general Ulisses Mesquita Gomes, nomeado comandante da força da Monusco; para ele, a crise no Congo deve ter uma solução política Foto: Exército Brasileiro

Nascido em Belo Horizonte e único militar em sua família, o general Ulisses, de 58 anos, estava de férias com a família quando recebeu a notícia de sua nomeação. O brasileiro, que já esteve em outra força de paz, a Minustah, no Haiti, e atualmente trabalhava no Comando Logístico (Colog) do Exército, recebeu durante a semana informações do Exército Brasileiro e da ONU sobre a situação na RDC. Ele marcou para o próximo dia 8 o embarque para a África. No domingo, dia 2, ele foi entrevistado pela coluna. Eis aqui suas respostas:

O efetivo da Monusco estava sendo paulatinamente retirado de regiões do Congo até 2022. Mas o retorno das operações do M-23 havia provocado a Operação Springbok, da Monusco sob o comando do general Miranda Filho, diante da incapacidade do exército da RDC de deter as ações do M-23. O cenário desta vez se repetiu de forma mais grave, com as quedas de Goma e Sake nas mãos dos rebeldes. Como fica a missão da Monusco diante desse novo cenário?

Eu não estou no terreno ainda, mas eu gostaria primeiro destacar que o trabalho feito no mandato anterior (da Monusco) foi excelente. De fato, havia começado seu plano de desengajamento em três fases. A primeira fase envolvia deixar o Kivú (do Sul) e isso foi logo após as eleições (em 2023) e isso estava indo muito bem, tanto é que em junho (de 2024), com o cessar-fogo, a ONU começou o desengajamento. E a ONU começou a reduzir o efetivo. Todo esse trabalho estava sendo feito com a FARDC e com o apoio de outras organizações regionais, notadamente a comunidade dos países do Sul da África e do Leste da África, que apoiavam a Monusco, que tem o mandato de proteção de civis. E isso estava sendo feito. Creio quão houve falha. A Monusco estava fazendo um excelente trabalho, só que houve um cessar-fogo que não foi respeitado pelo M-23. E aí o M-23 se fortaleceu, do meio do ano para cá, notadamente, com o apoio externo, que não vou citar o país (trata-se de Ruanda), pois isso é uma questão política.

Como é esse apoio externo? como ele se manifesta militarmente no teatro de operações?

Esse apoio externo tem equipamento pessoal, material, equipamentos pesados e sistema de rádio e de armas, como artilharia antiaérea e interferência eletrônica e treinamento. Há relatos que dentro do M-23 existem profissionais de força regular. Então, houve um desequilíbrio de forças, pois as tropas da ONU não são feitas para atuar contra exércitos regulares, com todas as funções de combate, comando e controle, manobra, a comunicação estratégica, isso tudo se juntou ao M-23, que está com uma força enorme. A tropa da ONU não vai atacar um exército regular. Ela não foi feita para isso. Então, para mim, foi esse fator externo que causou esse cenário, inclusive com 17 mortes de militares da Monusco, que eu lamento e me dirijo aos familiares e aos países que perderam esses que lutavam em defesa da paz.

A situação muda de qualidade e traz um desafio novo para a Monusco. Como ela pode proteger a população e estabilizar a região, se o confronto se transformar, de uma guerra civil, em um possível conflito entre países da região? Ela ficaria ultrapassada?

Eu não digo que está ultrapassada, pois não acho que a escalada vai chegar a esse tipo de conflito. O Conselho de Segurança está atuando, não só com a tropa da Monusco, mas também buscando uma saída política. A solução é política. Discute-se a possibilidade de sanções econômicas para o país que está ajudando o M-23, mas não cabe a mim discutir esse tema, pois minha missão é manter o ambiente seguro para que o processo político, de pacificação, avance. A solução vai passar pelo Conselho de Segurança atuando no campo político.

Rebeldes do M-23 escoltam soldados do governo do Congo e policiais que se renderam para um local desconhecido após a captura de Goma
Rebeldes do M-23 escoltam soldados do governo do Congo e policiais que se renderam para um local desconhecido após a captura de Goma Foto: Moses Sawasawa/AP

Boa parte da população das duas cidades – Goma e Sake – são da etnia hutu. Líderes hutus estiveram envolvidos no genocídio dos tutsis, em Ruanda, em 1994. O M-23 é em sua maioria formado por tutsis. Segundo o general Miranda Filho, que comandava a Monusco, durante os eventos que levaram à deflagração da Operação Springbok, em 2023, pessoas eram assassinadas pela simples suspeita de resistir à presença e ao controle do território pelo M-23 ou por serem suspeitas de colaborar com as forças da RDC. Diante desse cenário, existe o risco de uma limpeza étnica na área vitimando hutus?

Primeiramente, eu queria destacar o importante trabalho dos soldados brasileiros pela paz no mundo. Estivemos 13 anos no Haiti e eu serei o sexto general brasileiro a liderar a Monusco. O trabalho estava bem encaminhado. Além disso, desde 2018, o Brasil está treinando as Forças Armadas do Congo. Com relação à questão étnica, eu não descarto a possibilidade, mas eu creio que hoje ela é pano de fundo para interesses regionais envolvendo o M-23 que são as riquezas minerais do leste do Congo, como ouro e diamante, além do coltan, que você sabe, é um minério nobre e importantíssimo para indústria de celulares. Eles estão fazendo comércios ilegais, por meio de contrabando desses minérios. Eu creio que não haverá a limpeza étnica, em razão do apelo, da reação internacional, que seria muito grande, provocando sanções severas contra o país (o general não o cita mais uma vez, mas se trata de Ruanda).

Que notícias o senhor tem sobre a situação dos militares brasileiros em Goma? Quais relatos o senhor têm?

Estão todos dentro da base da ONU em Goma, estão todos em segurança. O M-23 não entrou na base e não vai entrar na base. Atacar as tropas da ONU hoje não é o objetivo deles. O objetivo é controlar aquela área. A pressão internacional, caso isso ocorra, seria muito grande contra o país (Ruanda) que está apoiando. A situação está mais calma lá.

Há cerca de 500 mil civis deslocados em razão do conflito atual. Há civis abrigados nas bases da ONU, em Goma?

Eu não tenho relato disso. Há tropas da república democrática do Congo dentro de nossas bases, no quartel-general, e também dentro da base do Uruguai, que tem efetivo maior, mais de mil soldados.

General Ulisses acredita na ação do Conselho de Segurança da ONU para a solução política da crise no Congo
General Ulisses acredita na ação do Conselho de Segurança da ONU para a solução política da crise no Congo Foto: UN Photo/Loey Felipe

As bases da ONU estão agora em uma área dominada pelo M-23. Como é que fica a logística para o abastecimento dessa tropa?

Ela está sendo feita sem restrição, assim como o trânsito nosso para o canal humanitário também está aberto.

É possível cogitar uma retirada da Monusco de Goma?

Eu não posso falar isso agora, pois se trata de uma questão operacional. Creio que a situação vai voltar à da época do general Santos Cruz (quando o M-23 desocupou Goma, em 2013). Acredito na pressão político-diplomática, de forma que o M-23 vai desocupar a área. A pressão é grande. A minha ideia é manter a base lá. Ali é um grande hub, um centro, uma capital regional que tem interesse estratégico para a gente.

O senhor já esteve no Haiti. O que o senhor espera encontrar na RDC que seja diferente da missão no Caribe?

No Haiti, eu fui subordinado ao general Santos Cruz, cujo relatório foi muito bem feito. Eu servi na ONU na época do relatório (do general Santos Cruz sobre a ação da Monusco, no Congo, entre 2013 e 2015 ) e fui responsável pela implementação dele, das medidas do relatório para melhorar as missões. A diferença do Haiti é basicamente o fator externo, que no Haiti não havia. Ali tem um interesse regional e potências com interesses.

O senhor tem data para seguir para o Congo?

No próximo sábado eu embarco, no dia 8.

O senhor recebeu alguma orientação?

O Exército brasileiro está dando todo o apoio, assim como o quartel-general da ONU em Nova York. Tenho recebido informações atualizadas da situação deles e dos militares de nosso contingente na RDC. Já participei de reuniões com os países contribuintes de tropa na Monusco e a nossa missão permanente na ONU também está me apoiando.

O general Santos Cruz chefiou a Monusco entre 2013 e 2015, quando os rebeldes do M-23 foram expulsos de Goma
O general Santos Cruz chefiou a Monusco entre 2013 e 2015, quando os rebeldes do M-23 foram expulsos de Goma Foto: Monusco/Sylvain Liechti

O senhor já tem uma ideia do que vai encontrar lá e de como estão as conversas entre os envolvidos nessa crise. O senhor embarca com a expectativa de que a crise possa se resolver pela política?

Eu só vejo a solução dessa situação hoje pelo viés político. Minha missão será manter o mandato da ONU, de proteção dos civis, e manter o ambiente seguro e estável para que os atores políticos façam a negociação a fim de que o M-23 saia de Sake e Goma e de outras cidades ocupadas. Há ainda o componente civil e o policial da Monusco que trabalham integrados para servir à chefe da missão para que ela chegue a uma solução pacífica para esse conflito no resto do Congo. Existe ali um processo com apoio de Angola e do Quênia que visam reduzir as tensões entre os beligerantes e com foco no desarmamento.

Pessoalmente, o que significou para o senhor assumir esse comando?

É uma honra e um privilégio representar o Exército Brasileiro na maior missão de paz conduzida pela ONU hoje e buscar soluções para o conflito a fim de garantir um futuro melhor para a população do Congo. Eu nasci em Belo Horizonte e tenho 58 anos. Não tenho nenhum militar na minha família. Somos oito filhos. Não tenho tio ou parente. Entrei como um desconhecido no Exército.

O relato do coronel Drumond, direto de Goma

Além da entrevista com o futuro comandante da Monusco, a coluna buscou ouvir quem testemunhou a ação do M-23, no Congo. Era dia 26 de fevereiro quando as bombas e os disparos de fuzis dos rebeldes atingiram as bases da ONU, em Goma. Os rebeldes apoiados por Ruanda diziam visar as tropas da Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) que buscavam refúgio nas bases dos capacetes azuis, temendo o que lhes poderia acontecer caso fossem capturados pelos milicianos, quase todos da etnia tutsi.

O coronel Felipe Drumond Moraes, que está na base da Monusco em Goma, cercada pelos rebeldes do M-23
O coronel Felipe Drumond Moraes, que está na base da Monusco em Goma, cercada pelos rebeldes do M-23 Foto: Monusco/Exército Brasileiro

Cinco militares brasileiros estavam ali, entre eles o coronel Felipe Drumond Moraes, um carioca de 51 anos, nascido em Volta Redonda, no Rio, que está ali há quase um ano. Assistente militar sênior do comando da Monusco, ele acompanhou toda a crise que levou à captura das cidades de Goma e Sake pelos rebeldes, aprofundando a crise humanitária no leste da nação africana.

Drumond conversou com a coluna durante a semana, enquanto os rebeldes cercavam a base onde está, em Goma. Ele é um dos 22 brasileiros que estavam engajados na Monusco, que mantém bases em mais de uma região do País. Em Beni, por exemplo, 11 deles participam da equipe que treina militares da RDC e da Monusco para operações na selva. Em Goma, além do coronel, um tenente-coronel e um sargento trabalham no Estado-Maior dos capacetes azuis, enquanto dois capitães estão engajados no Batalhão do Uruguai (URUBAT).

“Apesar do avanço do M-23, a Monusco continua com a mesma atribuição, a proteção de civis e apoio às instituições do país, dentre outras, de acordo com mandato que foi renovado em dezembro de 2024 e tem a duração de um ano”, afirmou Drumond. De acordo com o coronel, embora o M-23 “tenha conquistado boa parte do Kivu do Norte, a Monusco ainda se faz presente em outras partes do país, como no entorno de Beni e na província de Ituri, onde as ameaças e os desafios são outros”.

Pessoas caminham por um campo para deslocados perto de Goma, no leste da República Democrática do Congo
Pessoas caminham por um campo para deslocados perto de Goma, no leste da República Democrática do Congo Foto: Acnur/Guerchom Ndebo

Quando chegou ao País, a Monusco havia acabado de lançar, em outubro de 2023 a Operação Springbok, para garantir a segurança da população local durante o processo eleitoral no Congo. Ele durou até o cessar-fogo de julho de 2024. “Contudo, com a quebra do cessar-fogo, em janeiro deste ano, e com avanço do M-23, que resultou no intenso combate que vivenciamos recentemente, o cenário mudou. Após a consolidação da cidade de Goma pelo M-23, os combates cessaram. Embora possam ainda existir pequenos focos de resistência, a situação é de relativa calma, porém instável.”

De acordo com o coronel, “o desafio agora é administrar uma crise humanitária, principalmente, nos campos de refugiados (existem milhares de refugiados no entorno da cidade de Goma, mais de 500 mil) que necessitam de água, comida, medicamentos e infraestrutura sanitária”.

Enquanto aguarda a chegada no Congo do novo comandante da Monusco, o general Ulisses Mesquita Gomes, o coronel afirma que os brasileiros têm “conseguido manter o condicionamento físico e psicológico”. Além de paraquedista, Drumond tem os cursos de guerra na selva, operações especiais e de inteligência do Exército brasileiro. Antes do Congo, ele esteve em 2017 no Minustah, a força de paz da ONU para o Haiti.

Rebeldes do M-23 patrulham as ruas de Goma, da República Democrática do Congo, depois da tomada da cidade
Rebeldes do M-23 patrulham as ruas de Goma, da República Democrática do Congo, depois da tomada da cidade Foto: Brian Inganga/AP

“Os militares brasileiros são muito bem preparados para enfrentar os desafios das missões de paz, o que facilita a nossa adaptação de uma situação de paz para uma situação de conflito violento.” Apesar dos cortes de energia e da internet ocorridos após a tomada da cidade pelo M-23, o coronel ainda consegue manter contato com a família no Brasil pelo celular e pela internet. “Embora precários, ainda funcionam”, disse.

Por Estadão





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