Com a posse para seu segundo mandato como presidente dos EUA, Donald Trump, um notório valentão que faz de agressões, desqualificações e fake news ferramentas do cotidiano, iniciou uma nova fase de deterioração da convivência online. Com a adesão explícita das big techs a essa agenda, o processo deve se ampliar exponencialmente. Isso seria grave o suficiente por si só. Mas em um mundo dominado por redes sociais, o maior risco vem do exército voluntário que amplia seus métodos para além dos limites do digital, esgarçando a própria trama da sociedade.
Há aqueles que se alinham a esse movimento e participam ativamente dele. Existem os que acham tudo “normal”, e acabam espalhando o conteúdo nocivo alegremente, com um entendimento distorcido da liberdade de expressão. E tem os que parecem não se importar com nada e acabam fazendo isso de forma inconsciente.
Não há nada de “normal” ou inocente nisso! Promover o ódio, cercear pensamentos diferentes, atacar grupos sociais, roubar identidades, expor pessoas estão entre os piores comportamentos de nosso tempo. Além da brutal violência psíquica e até física contra as vítimas, isso pode acabar com o debate público: em um meio inseguro e agressivo, as pessoas ficam desencorajadas a expor suas ideias construtivamente. E assim a democracia se enfraquece e os valentões ganham poder.
Pelo seu grande público e influência, jornalistas e criadores de conteúdo digital têm obrigação de combater essas práticas. Mas não são suficientes para eliminar esse mal. A sociedade só reencontrará um caminho sustentável de desenvolvimento quando cada um se empenhar em promover um ambiente digital civilizado.
Não é uma tarefa simples ou pequena. Infelizmente muitos que propõem uma convivência harmônica e construtiva no meio online acabam sendo agredidos por aqueles que se beneficiam do ódio e da polarização, em uma tentativa explícita de silenciá-los. Por isso mesmo, não se devem deixar intimidar.
Mas há boas maneiras para se lidar com esses “trolls da política digital”. Fazer as escolhas certas diferencia entre uma explosão de ódio e uma contenção da violência pela racionalidade e pela empatia.
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Como mencionado anteriormente, nada disso é protegido pela liberdade de expressão. O artigo 5º da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais, determina, em seu inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” Isso assegura que se possa dizer o que quiser, mas, ao mesmo tempo, determina que os responsáveis por violações de direitos como honra, imagem ou privacidade, ou que cometam outros crimes sejam identificados e punidos.
Muitos argumentam que querem ter a liberdade de falar nas redes as maiores barbaridades, e que depois a Justiça que cuide das punições. Isso seria aceitável se o Judiciário tivesse capacidade infinita de julgar e punir todas as violações, o que está muito longe de acontecer. Assim essa proposta, travestida de liberdade, não passa de um subterfúgio para se cometer esses crimes impunemente.
Os ataques online se unem a outras formas de violência, como as direcionadas a grupos específicos, como mulheres, negros, pessoas com deficiência e LGBTQIA+, que vivem em determinada região ou professem uma fé específica. É comum que essas características sejam usadas para inflamar o ódio e ampliar a desinformação, para que o valentão atinja objetivos que não têm nada a ver com a situação da vítima.
Não alimentem os “trolls”
O ataque dos “trolls digitais” não pode ser classificado como mera contraposição de ideias divergentes (como costumam se defender), porque eles não aceitam o debate. Visam apenas desestabilizar sua vítima e prejudicar a troca saudável de argumentos.
Isso foi perfeitamente descrito em 1945 pelo austríaco Karl Popper (1902-1994) com seu “paradoxo da tolerância”, no best-seller “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”. Segundo ele “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”. O filósofo explicava que “se não estivermos preparados para defender a sociedade do assalto da intolerância, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.
Para ele, as filosofias intolerantes devem ser combatidas com argumentos racionais e mantidas em xeque frente à opinião pública. Mas alertava que os intolerantes não lidam com a razão, “a começar por criticarem todos os argumentos e proibindo seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores e os ensinam a responder aos argumentos com punhos ou pistolas”. E sugeria que “devemos exigir que qualquer movimento que pregue a intolerância fique fora da lei e que qualquer incitação à intolerância e perseguição seja considerada criminosa”.
Popper queria evitar algo que se observa muito hoje. Formadores de opinião e pessoas comuns se afastam do debate público com medo dos “trolls”. Quando isso acontece, as ideias dos valentões evoluem para uma sociedade totalitária, em que os que não se alinharem ao grupo violento perdem gradualmente seus direitos.
Deve-se tomar cuidado ao responder aos “trolls”. Um confronto direto é tudo que eles querem, pois isso valida seus métodos e cria novos valentões. Além disso, o embate tende a normalizar o discurso violento e banalizar suas pautas excludentes.
Às vezes, deixar o “troll” falando sozinho é o melhor a se fazer. O problema é que, nas redes sociais, alguém pode amplificar os ataques desnecessariamente. Nesse caso, o silêncio pode não servir mais. A violência deve então, de maneira constante e resiliente, ser combatida com ética, sensatez e propostas construtivas.
Em 1947, Winston Churchill disse: “Ninguém espera que a democracia seja perfeita ou infalível. Na verdade, tem sido dito que a democracia é a pior forma de governo, excetuando-se todas as demais formas.” O ex-primeiro-ministro do Reino Unido, considerado um dos maiores estadistas da história, sabia que a democracia só funciona bem pela contraposição de ideias. Mas isso só é válido quando pessoas com ideias diferentes não apenas conseguem conviver entre si, como ainda constroem juntas uma sociedade, em nome de um bem maior.
Diante do avanço de governos encabeçados por valentões de qualquer ideologia, que sistematicamente silenciam ideias diferentes das suas, as sociedades precisam reforçar a educação digital e midiática. A primeira permitirá que seus cidadãos saibam usar adequadamente os recursos digitais para uma vida melhor; a segunda, que desenvolvam um senso crítico refinado, informem-se melhor e fiquem menos suscetíveis à desinformação e à brutalidade dos “trolls”.
Mas acima de tudo, precisamos urgentemente resgatar nossa humanidade e nossa capacidade de sermos empáticos, inclusive com quem não conhecemos. É assim que verdadeiramente se derrota um valentão.
Opinião por Paulo Silvestre
É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.
Por Estadão