Novas diretrizes causam consequências em menos de três dias desde que presidente assumiu o cargo; outras diretrizes causarão efeitos a longo prazo
Faz menos de três dias que Donald Trump assumiu o cargo de presidente dos Estados Unidos, mas a transformação imigratória que ele ordenou já começou. Mais de 1,5 mil soldados foram enviados para a fronteira com o México na quarta-feira, 22. O chefe dos tribunais de imigração e outros três funcionários do alto escalão foram demitidos.
No México, cerca de 30 mil migrantes com entrevistas de asilo marcadas chegaram aos centro de migração e as encontraram canceladas. Mais de 10,4 mil refugiados no mundo que estavam com viagens aprovadas aos EUA de repente tiveram a entrada negada, sem qualquer reagendamento para suas passagens aéreas.
“Todas as viagens previamente programadas de refugiados para os Estados Unidos estão sendo canceladas, e nenhuma nova reserva de viagem será feita”, afirmou Kathryn Anderson, uma autoridade do alto escalão do Departamento de Estado, em um e-mail na noite de terça-feira, 21.
O escopo das mudanças imigratórias estabelecidas em dezenas de decretos executivos, memorandos presidenciais e diretrizes políticas foge do comum, até mesmo quando comparado às políticas do primeiro mandato de Trump, que já tinha a imigração como foco.
Muitas diretrizes levarão tempo para serem implementadas, ou enfrentarão obstáculos políticos, legais ou práticos. Algumas ficarão suspensas por juízes cautelosos. Outras exigirão pesquisa ou elaboração pelas diferentes agências envolvidas nas políticas de imigração. Por fim, há as que exigirão mais recursos do orçamento americano, o que irá desencadear uma briga no Congresso por recursos e prioridades.
Pelo menos três ações judiciais já foram movidas em um tribunal federal para impedir Trump de reinterpretar a garantia da 14.ª Emenda à cidadania americana por direito a quem nasceu no país. A retomada da proibição de viagens exige uma revisão em 60 dias sobre quais países devem ser afetados.
Trump também precisará de bilhões de dólares para construir as prisões e contratar os agentes de fronteira que ele prometeu, necessários para pôr o plano de “deportação em massa” em funcionamento. Uma diretiva do Departamento de Justiça para investigar autoridades nas chamadas cidades santuários que obstruam a agenda de imigração do governo também deve se arrastar por meses, conforme surgirem os conflitos.
Como resultado, o modelo exato do sistema migratório, que ajuda a definir o lugar dos Estados Unidos em um mundo que enfrenta problemas de migração em massa, desigualdade e identidade nacional, não será conhecido por semanas, meses ou até anos.
O que está em jogo é se os EUA continuarão a ser um lugar de refúgio para aqueles que fogem da pobreza, violência e desastres naturais ao redor do mundo. Tomadas em conjunto, as ordens relacionadas à imigração podem dificultar e muito os imigrantes — autorizados a estar no país ou não — de viver, trabalhar e criar famílias nos EUA sem a ameaça constante de prisão, condenação criminal ou deportação.
É de tirar o fôlego, tanto em termos de conteúdo quanto em número de ações que eles estão realizando logo de cara
Heidi Altman, diretora nacional de advocacia do Centro Nacional de Lei Imigratória
No entanto, Trump já demonstrou que está disposto a avançar ainda mais em direção a um país muito menos acolhedor para estrangeiros — na visão de seus críticos, trata-se de um exagero com consequências cruéis.
“É de tirar o fôlego, tanto em termos de conteúdo quanto em número de ações que eles estão realizando logo de cara”, disse Heidi Altman, diretora nacional de advocacia do Centro Nacional de Lei Imigratória. “Mas também em termos da pura disposição de quebrar a lei e tentar reescrever unilateralmente a Constituição.”
Declarando uma invasão
Trump justificou a reformulação da política de imigração com uma declaração de que há uma “invasão na fronteira sul (com o México)”. Essa acusação foi utilizada para exercer poderes vastos no sistema de imigração, com ordens para bloquear a entrada nos EUA, reunir e prender imigrantes, proibir viagens, restringir a cidadania americana aos filhos de imigrantes que nasceram no país (direito de nascimento), construir o muro na fronteira e acabar com o asilo para os solicitantes de refúgio.
Em 2017, Trump deu algumas ordens idênticas, muitas das quais foram revogadas no governo de Joe Biden. Oito anos depois, no entanto, pesquisas indicam que o atual presidente tem mais apoio entre os americanos para ser agressivo na política de imigração — em parte por causa do aumento de migrantes que chegaram ao país pela fronteira com o México no governo Biden. Trump também afirma repetidamente que a vitória nas últimas eleições lhe dá o poder para proteger a fronteira e limpar o país de pessoas que ele considera indesejadas.
Para combater o que chama de invasão, o presidente conta — como fez durante seu primeiro mandato — com décadas de leis que lhe dão ampla autoridade para proteger e defender os EUA contra ameaças dentro e fora de suas fronteiras. Estão incluídas leis relacionadas à segurança nacional, imigração, saúde pública e economia.
Desta vez, ele parece pronto para ir muito mais longe. “Ao invocar a Lei de Inimigos Estrangeiros de 1798, eu orientarei nosso governo a usar todo o poder da aplicação da lei federal e estadual para eliminar a presença de todas as gangues estrangeiras e redes criminosas que trazem crimes devastadores para o solo dos EUA, incluindo nas nossas cidades e centros urbanos”, disse durante o discurso de posse na segunda-feira.
Isso acontecerá, prometeu, “num nível que ninguém jamais viu antes”.
Os decretos executivos que Trump assinou nos dias seguintes reforçam essa afirmação. Muitas das ações que ele colocou em prática não faziam parte da agenda do seu primeiro governo: designar todos os cartéis mexicanos como organizações terroristas; criar novas forças-tarefa para capturar e deportar migrantes; impor a pena de morte a assassinos que não estivessem legalmente no país.
Na quarta-feira, o Departamento de Defesa anunciou que começaria a usar aviões militares para ajudar os oficiais de fronteira a deportar imigrantes para outros países e que designaria forças adicionais para ajudar a construir barreiras temporárias e permanentes ao longo da fronteira.
Os agentes da Patrulha da Fronteira também foram instruídos a não deixar em liberdade nenhum migrante que cruzou a fronteira enquanto este aguarda o julgamento, de acordo com um oficial familiarizado com o assunto. Os agentes foram instruídos a rapidamente recusar migrantes sem dar a eles a chance de pedir asilo.
Oito anos atrás, Trump reduziu o número de refugiados que os EUA aceitariam a cada ano. Na segunda-feira, ele simplesmente ordenou que o programa fosse suspenso completamente, de maneira que os defensores acreditam que significará que ele nunca mais será reiniciado enquanto for presidente.
“Ele está determinando tanta coisa que, desta vez, a suspensão do programa de refugiados parece quase uma coisa pequena”, disse David Bier, diretor de estudos de imigração do Cato Institute, um centro de pesquisa americano. Segundo ele, a estratégia de Trump é sobrecarregar os tribunais e grupos de vigilância. “Estão apenas fazendo tudo para justificar o que querem fazer”, disse.
Causando medo
Na terça-feira à noite, funcionários do Departamento de Justiça receberam um memorando com a ordem de que procuradores dos EUA em todo o país investiguem e processem policiais em Estados e cidades se estes se recusarem a aplicar as novas políticas de imigração.
“A lei federal proíbe atores estaduais e locais de resistir, obstruir e de outra forma deixar de cumprir comandos legais relacionados à imigração”, escreveu no memorando Emil Bove III, procurador-geral adjunto interino do departamento e ex-membro da equipe de defesa criminal do presidente. Autoridades federais “devem investigar incidentes envolvendo qualquer má conduta para possível processo”, acrescentou.
O memorando foi uma das dezenas de ameaças que podem não acontecer de imediato. Mas seu poder — pelo menos a curto prazo — está no medo que elas causam.
De forma semelhante, Trump rapidamente eliminou uma política do governo Biden que protegia amplamente áreas “sensíveis” como igrejas, escolas e hospitais de serem alvos de ataques das autoridades migratórias. “Os criminosos não poderão mais se esconder nas escolas e igrejas dos Estados Unidos para evitar a prisão”, disse um porta-voz do Departamento de Segurança Interna.
Jason Houser, ex-chefe de gabinete da agência de Imigração e Alfândega do governo Biden, discordou. “Acho absurdo alegar que a segurança nacional está comprometida se a fiscalização da imigração evita salas de aula de terceira série, igrejas, DMVs e hospitais”, disse ele.
“Reverter proteções de localização sensível corre o risco de minar a confiança da comunidade e, em última análise, a capacidade da agência de Imigração e Alfândega de proteger efetivamente nossas comunidades a longo prazo”, acrescentou.
Até esta quarta-feira, os defensores da imigração disseram que não estavam cientes de casos em que agentes imigratórios tenham operado em um lugar antes considerado fora dos limites. No entanto, vários disseram que a mensagem era clara para os imigrantes já preocupados com seu destino agora que Trump estava de volta à Casa Branca. “É quando se torna terror, sabe?”, disse Heidi Altman.
Ainda em andamento
A lista de mudanças drásticas é longa.
Os oficiais do Departamento de Segurança Interna foram instruídos a exigir informações de saúde e histórico criminal de “estrangeiros envolvidos na invasão através da fronteira sul” para que eles possam ser impedidos de entrar. Um decreto executivo orienta os oficiais a reunir essas informações de todos os “estrangeiros”, deixando aberta a possibilidade de que todos os imigrantes, incluindo aqueles que chegaram aos EUA por via aérea, possam estar sujeitos a um escrutínio muito maior.
As autoridades foram encarregadas de criar Forças-Tarefa de Segurança Interna para trabalhar com agências policiais locais e estaduais para localizar, prender e deportar migrantes.
Os departamentos federais que trabalham com organizações não governamentais e outros grupos humanitários foram instruídos a iniciar auditorias desses grupos para garantir que nenhum dinheiro federal seja destinado a imigrantes indocumentados.
Isso atemoriza as ONGs. Muitas passaram décadas ajudando a alimentar, vestir, abrigar e encontrar trabalho para imigrantes quando eles chegam aos Estados Unidos. Muitos desses imigrantes precisam de ajuda enquanto estão em processos de imigração para determinar se podem ficar.
Os 1,5 mil soldados da ativa enviados para a fronteira com o México se juntarão aos 2,5 mil soldados reservistas do Exército e da Guarda Nacional convocados para a ativa nos últimos meses para dar suporte a agentes federais responsáveis pela aplicação da lei de imigração. As missões incluem detecção e monitoramento, entrada de dados, treinamento, transporte e manutenção.
Não está claro qual será o papel dos 4 mil soldados agora no governo Trump.
Segundo especialistas, as novas políticas de fronteira e o início do governo Trump provavelmente levariam a um número menor de migrantes buscando asilo através da fronteira sul.
“A fronteira ficará bem quieta no começo”, disse Adam Isacson, especialista em segurança de fronteira do Washington Office on Latin America, uma organização de defesa dos direitos humanos. “Os primeiros meses do último mandato de Trump viram o menor número de apreensões de migrantes de todo o século 21. Podemos ver ainda menos nos próximos meses.”
Em vez disso, ele disse, os migrantes serão incentivados a cruzar a fronteira sem serem detectados.
Por Estadão