Solo alagado em áreas do Pará e do Amapá armazena até 4 vezes mais carbono do que floresta de terra firme; preservação ajuda no equilíbrio do bioma e pode render créditos de mitigação
Na costa do Pará e do Amapá, no encontro entre o maior rio do mundo – o Amazonas – e o Oceano Atlântico, a floresta se torna mangue. Esse ecossistema peculiar armazena até quatro vezes mais carbono do que o cobertura vegetal de terra firme, segundo estudos conduzidos pelo ecologista marinho Angelo Bernardino.
Floresta de mangues-vermelhos e pretos em Curuçá (PA). As árvores ajudam as comunidades pesqueiras: quando a maré baixa, os peixes ficam presos nos manguezais, facilitando a pesca Foto: Pablo Albarenga/National Geographic
Os dados sobre o potencial de mitigação climática dos mangues obtidos pela pesquisa foram publicados pela primeira vez este ano pela revista científica Nature. O Brasil tem a segunda maior extensão de manguezais do mundo, dois terços deles na Amazônia, cuja importância foi menos estudada e divulgada em relação à floresta não alagável.
“Muito se fala da Amazônia brasileira, mas pouco se reconhece que florestas de manguezais também são parte dela”, afirmou Bernardino, pesquisador da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), ao Estadão durante o National Geographic Explorers Festival realizado em setembro em Lima, no Peru.
Neste mês, Baku, no Azerbaijão, recebe a Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-29), onde negociadores dos governos de centenas de países discutirão metas de emissões de corte de gases de efeito estufa e mecanismos de financiamento para adaptação ao aquecimento global.
A cúpula da biodiversidade realizada na Colômbia até o último fim de semana terminou sem consenso entre nações ricas e emergentes e acendeu o alerta para as dificuldades do próximo fórum climático.
Toda floresta funciona como reservatório de carbono, e acumula o gás estufa tanto na parte aérea – nas plantas – quanto no solo. A particularidade dos manguezais é que, diferente das florestas terrestres, a maior parte desse banco de carbono está no solo. Sem oxigenação e alagados, esses solos impedem a degradação do carbono orgânico que é enterrado.
A pesquisa estimou o estoque total médio de carbono dos mangues amazônicos em aproximadamente 468 MgC/ha (megagramas de carbono por hectare). Segundo estimativas, a mitigação da perda de áreas de mangues amazônicos poderia gerar até US$ 5 milhões (algo em torno de R$ 29 milhões) ao ano em créditos de carbono para o Brasil.
“O alagamento do solo faz com que essas florestas acumulem muito mais carbono por área quando comparado aos biomas terrestres, por isso os manguezais têm essa altíssima capacidade de estocar carbono por longos períodos”, explica.
‘Não existia no mapa’
Em 2022, o ecologista marinho e professor da Ufes se juntou à pesquisadora queniana Margaret Owuor e a um time de cientistas brasileiros para investigar quanto de carbono está armazenado nos mangues amazônicos.
A pesquisa desenvolvida ao longo dos últimos dois anos combinou trabalho de campo em diferentes locais ao longo da costa amazônica, análises laboratoriais e dados de sensoriamento remoto, com o objetivo de determinar os estoques de carbono, as taxas de desmatamento e as emissões de gases estufa provenientes da conversão de manguezais em outros usos da terra na região.
Amostras de solo foram coletadas em diferentes profundidades para determinar o conteúdo de carbono orgânico do solo. Segundo o pesquisador, a dois metros desse solo já se encontra matéria orgânica depositada há mais de 1,5 mil anos.
O resultado revela a capacidade dessas florestas de armazenar carbono por longo período e o prejuízo trazido pela sua devastação, que libera gases de centenas e até milhares de anos na atmosfera.
Áreas de mangue no delta do rio Amazonas
Equipe do ecologista marinho Angelo Bernardino estudou seis regiões de mangue no Amapá e Pará, incluindo áreas que não haviam sido mapeadas por cientistas
O que define o ecossistema de mangue é a existência de floresta em áreas sujeitas à variação de maré, e a equipe de cientistas constatou que os mangues amazônicos tinham paisagens distintas conforme a salinidade.
Segundo Bernardino, os manguezais do Pará têm aspecto mais típico, com presença de risofloras – árvores grandes, com raízes aéreas e cheias de ramificações.
Já na foz do rio Amazonas, em Bailique, próximo a Macapá, a enorme descarga de água doce no mar cria uma paisagem completamente diferente. Devido à baixa salinidade, há uma mistura única entre as árvores de mangue e outras típicas de florestas de várzea, com palmeiras como o buriti.
Nesse local, um dos feitos da expedição foi identificar 180 km² de florestas de mangue de água doce que não haviam sido mapeadas. “Aquela área não era identificada como mangue; não existia nos mapas globais”, explica Bernardino.
Financiados pela Iniciativa Perpetual Planet, da National Geographic Society em parceria com a Rolex, os cientistas também buscaram precisar a relação dos mangues com o Rio Amazonas e as comunidades locais.
Negociações climáticas
A conservação dos mangues pode ser considerada uma história de sucesso: 80% deles estão preservados dentro das unidades de conservação costeiras.
Pesquisadores estimam que essa taxa deve ser similar nos mangues amazônicos: grande parte deles estão em reservas extrativistas, unidades de conservação de uso sustentável por comunidades tradicionais.
Uma das aplicações da pesquisa é que as estimativas de estoque de carbono nos mangues possam gerar créditos de carbono para o Brasil.
Segundo Bernardino, os dados foram apresentados ao governo federal para que possam ser incluídos na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, em inglês), onde estão fixadas as metas de redução de emissões de gases estufa do País.
“O Brasil usa biomas terrestres nessa contabilidade, mas nunca usou florestas de manguezais, mesmo tendo grande benefício climático”, afirma o pesquisador.
Ou seja, isso significa que a floresta pode representar um repositório de carbono maior do que se imaginava até agora. Isso reforça a demanda de ações de preservação e pode contribuir para a atração de mais recursos voltados para proteger o bioma.
750 hectares perdidos ao ano
Além de grandes reservatórios de carbono, os mangues são áreas de reprodução e alimentação dos peixes e crustáceos. São cruciais para o sustento e a segurança alimentar das comunidades ribeirinhas que vivem predominantemente da pesca e também para o abastecimento das cidades.
Chef nascido e criado em Curuçá (PA), Léo Modesto fez a ponte entre a equipe de pesquisa de Bernardino e as comunidades ribeirinhas da região. Em seu trabalho, o paraense busca valorizar a cultura alimentar do nordeste do Estado, que inclui técnicas indígenas e a mariscagem que aprendeu com a mãe.
“Ela carrega esses traços culturais até hoje, na produção de farinha, nas técnicas de moquear, de assar (o peixe). Tudo isso é legado que recebi e decidi transformar na minha identidade na cozinha. Com ela carrego um povo”, diz.
Recentemente, a família que pesca nos mangues da Amazônia Atlântica há gerações tem percebido os impactos da mudança do clima na região, como seca e alteração das marés, que levam os frutos do mar para mais longe.
Modesto lembra que, na adolescência, quando pilotava a canoa para ir mariscar com a mãe e um grupo de mulheres, era bem mais fácil encontrar peixes e mariscos.
“A gente descia o igarapé e a 300, 400 metros conseguia coletar marisco suficiente para o almoço, comia comida fresquinha quase todo dia”, diz.
Mesmo sendo definidos pelo Código Florestal como Áreas de Preservação Permanente (APP), ainda há trechos de mangue removidos para ser convertidos em pastagens ou fazendas de camarão.
São cerca de 750 hectares perdidos por ano. “É uma área pequena se comparar a devastação (no restante) da Amazônia. Mas, como os mangues têm muito carbono, não pode se dar ao luxo de perder nada”, afirma Bernardino.
Com base nessa área, a mitigação da devastação de manguezais no bioma poderia gerar no mínimo US$ 5 milhões ao ano em créditos de carbono para o Brasil, considerando o valor mínimo de US$ 5 a tonelada de CO2 equivalente (o preço varia no mercado voluntário e pode chegar a até US$ 20), nos cálculos do cientista.
Uma nova fase da pesquisa, com dados ainda inéditos, estima o valor de cada hectare preservado de manguezal, conforme os chamados serviços ecossistêmicos prestados por essas áreas, por exemplo, ao sequestrar de carbono e manter a água limpa.
Com esses dados, além de obter créditos de carbono, é possível estruturar uma política de incentivo econômico para que as populações da zona costeira amazônica sigam protegendo os mangues. Elas não recebem pagamento de serviços ambientais, mecanismo previsto por lei federal, pela preservação.
“Esse financiamento verde poderia ser a solução para a conservação (dos mangues) e para dar suporte às formas de produção sustentáveis das comunidades”, conclui o pesquisador.
Por Estadão