Transparência Brasil afirma que mudança camufla despesas e não resolve governança das companhias; governo diz que há mecanismos para acompanhar ações
O governo federal deixará de registrar as despesas de estatais que dependem de recursos do Tesouro Nacional nos principais sistemas que dão transparência para os gastos públicos se as propostas de retirar essas empresas do Orçamento forem aprovadas. A Transparência Brasil apontou que as medidas camuflam os gastos e não resolvem a governança das empresas públicas.
Os projetos foram revelados pelo Estadão na semana passada e provocaram críticas de especialistas pelo risco de descontrole do dinheiro público e manobras fiscais. O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, padrinho da iniciativa, por outro lado, afirmou que os mecanismos previstos na legislação garantem o acompanhamento da aplicação dos recursos. O Ministério do Planejamento e Orçamento, que assina os projetos, não comentou sobre a falta de transparência.
A proposta do governo afrouxa as regras para que empresas públicas saiam da contabilidade tradicional e passem a gastar como instituições independentes, mesmo que ainda dependam de dinheiro do Tesouro Nacional. Com a mudanças, os gastos não serão mais registrados no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), que reúne as movimentações financeiras do governo federal.
Na prática, as despesas não vão aparecer de forma detalhada no Portal da Transparência e em outros sites públicos que divulgam informações com base nesse sistema. Não será mais possível saber com precisão, com base em informações públicas, para onde vai o dinheiro, quem são os fornecedores, que tipo de projeto é financiado e a localidade do gasto.
O governo promete dar transparência por meio do Programa de Dispêndios Globais, portarias bimestrais de execução do Orçamento de Investimento e do Sistema de Informação das Estatais (Siest), aos quais as estatais se submetem. Essas plataformas, porém, registram apenas informações contábeis, como o volume de receitas e despesas, e de gestão, como o número de funcionários, e não o detalhamento dos gastos.
“Haverá uma perda de informações e de publicização de informações entre o que está nesses sistemas e o que está hoje no Siafi. A falta de transparência afeta o controle social sobre o que as empresas estão entregando e se estão de acordo com o interesse público”, afirma a diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji. “A sociedade ficará sem saber se as empresas estatais estão cumprindo suas missões institucionais.”
Governo vê ponto positivo em mecanismo criticado por especialistas
Os projetos autorizam a assinatura de um contrato de gestão, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), para dar autonomia para as empresas. Especialistas dizem, no entanto, que o dispositivo da LRF não pode ser usado para tirar estatais do Orçamento. “O governo não quer atacar os problemas reais de gestão das estatais e fica querendo resolver as coisas com contabilidade criativa”, afirmou a economista Selene Peres Peres Nunes, uma das autoras da LRF.
Integrantes da equipe econômica argumentam que, tirando as estatais do Orçamento, é possível oferecer um caminho para que as empresas busquem se autofinanciar, gastar com receitas próprias e fazer os investimentos necessários sem os limites fiscais, emancipando essas instituições.
“O objetivo da medida é exatamente o contrário, é fazer com que a estatal não dependa mais de recursos orçamentários”, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao rebater as críticas. Tirar os limites fiscais, no entanto, é justamente um dos motivos de críticas de especialistas e do mau humor no mercado financeiro provocado pela medida.
Fontes do Poder Executivo alegam que a proposta não é voltada para as 17 empresas dependentes e que a mudança não seria adotada em estatais consideradas “de sucesso”, como a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). A principal empresa no foco da transição é a Telebras, que enfrenta sérios problemas de caixa e gastou mais de R$ 100 milhões sem dinheiro disponível, o que não é permitido. Os projetos enviados ao Congresso, no entanto, não trazem esse detalhamento. Além disso, não foi apresentada nenhuma medida que aponte como as empresas passarão a ser autossustentáveis saindo do Orçamento.
“A mudança pode acabar escondendo e camuflando mais esses problemas, inclusive as camadas de indicações políticas, por causa da redução de transparência das estatais”, diz Marina Atoji, da Transparência Brasil. “Há o reconhecimento do problema de governança dessas estatais, mas o que foi ignorado é que a solução não é simplesmente tirá-las do Orçamento, é fazer uma reforma na governança antes disso.”
O dinheiro que o governo coloca nas empresas continuará submetido aos limites fiscais, mas o que é gasto com receitas próprias não, abrindo espaço no Orçamento. Tudo que a empresa faz com o dinheiro, independentemente da fonte, no entanto, não aparecerá mais no sistema de pagamentos do governo.
Além disso, a migração vai ocorrer imediatamente, assim que a estatal assinar o contrato de gestão, e não só depois que ela adquirir a sustentabilidade financeira, como manda a regra atualmente. “Tirar a transparência de uma só vez compromete o acompanhamento inclusive do processo de transição. É como arrancar o curativo de uma vez”, diz a especialista da Transparência Brasil.
Governo promete transparência mesmo com estatais fora do Orçamento
O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, idealizador dos projetos, afirmou que as empresas que vierem a assinar o contrato de gestão seguirão mecanismos de governança, como conselho fiscal, conselhos de administração com conselheiros independentes, auditoria independente e licitações transparentes.
“Tais mecanismos, todos previstos na legislação brasileira que disciplina a forma como as empresas estatais devem dar transparência à sua atuação, garantem à sociedade o acompanhamento da aplicação dos recursos pelas empresas de controle estatal”, disse a pasta.
O órgão reafirmou a intenção de tornar as empresas hoje dependentes em autossustentáveis financeiramente e o compromisso com as regras fiscais e a transparência das contas públicas. O Ministério do Planejamento e Orçamento, que assinou o envio dos projetos, não se manifestou e direcionou os questionamentos sobre transparência ao Ministério da Gestão.
Por Estadão