Os espaços da entidade assistencial Instituto Reconstruir, em Montes Claros (MG), estavam quase vazios na hora do almoço da terça-feira (1) anterior às eleições municipais.
Em uma das salas, estavam máquinas de costura doadas pela estatal Codevasf. Em outros cômodos, havia lousas com cálculos que simulavam contagem de votos, além de material de campanha do líder da entidade e então candidato a vereador Jefferson Joe (Solidariedade-MG).
Joe não estava lá, mas a pessoa que tomava conta do espaço disse à reportagem da Folha que ele poderia ser encontrado ali mais tarde. O local afinal havia se transformado no comitê de campanha dele.
Nas redes sociais, fotos das máquinas de costura já estampavam a propaganda eleitoral de Joe e, naquela semana, o instituto havia recebido mais uma doação da Codevasf, desta vez de triciclos, oficialmente para ações de coleta e reciclagem de lixo.
A distribuição de produtos pela superintendência da Codevasf em Montes Claros é marcada pela destinação a entidades assistenciais urbanas, a maioria ligadas a comunidades religiosas, como a católica e a evangélica, e inclui até uma academia de jiu-jítsu que tem um projeto social.
Além das máquinas de costura, chama a atenção o número de freezers entregues para as associações privadas.
Além do potencial uso eleitoral, essas situações mostram um desvio da finalidade histórica da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), criada na década de 1970 para promover projetos de irrigação no semiárido brasileiro.
A estatal foi apropriada pelos políticos e expõe como o governo Lula (PT), conforme mostrou a Folha, repete a farra de distribuição de bens da estatal iniciada na gestão de Jair Bolsonaro (PL). A companhia é comandada por aliados de líderes do centrão, nomeados por Bolsonaro e mantidos na gestão petista.
As doações a entidades privadas também dão margem a irregularidades no uso dos bens doados, uma vez que a saída deles do patrimônio público dificulta a fiscalização oficial e o controle social.
No catálogo de produtos disponibilizado pela Codevasf a deputados e senadores, para que eles escolham quais bens serão entregues pela estatal em seus redutos eleitorais, com o financiamento de emendas parlamentares, as máquinas de corte e costura estão na seção “Economia Criativa”, com equipamentos cujos preços variam de R$ 800 a R$ 4.300.
Contatado por telefone, o líder do Instituto Reconstruir afirmou que as máquinas de corte e costura recebidas da Codevasf foram bancadas com emendas do deputado Zé Silva (Solidariedade-MG) e do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e os triciclos, com emendas de Pacheco.
Jefferson Joe foi um dos mais votados no primeiro turno em Montes Claros, com 2.373 votos, mas não obteve vaga na Câmara Municipal em razão dos cálculos do quociente eleitoral.
Na Bahia, a superintendência da Codevasf em Juazeiro, que fica a cerca de 500 km de Salvador, doou máquinas de costura para a academia Associação Nordeste Jiu Jitsu MMA (artes marciais mistas), localizada na capital baiana.
A entidade é ligada a Felipe Lucas (PSDB), que, no primeiro turno das eleições municipais, foi eleito suplente de vereador em Salvador. A candidatura dele foi apoiada pelo deputado federal Elmar Nascimento (União Brasil), que busca ser eleito presidente da Câmara dos Deputados em 2025.
Ainda no governo Jair Bolsonaro (PL), Elmar foi o responsável por indicar o diretor-presidente da Codevasf, Marcelo Moreira, que segue no cargo no governo Lula.
A doação dos sete kits de corte e costura com custo estimado em R$ 82,2 mil foi publicada no “Diário Oficial da União” em 26 de setembro. Na quarta-feira (2) anterior à eleição de primeiro turno, a Folha esteve na sede da associação, no bairro da Boca do Rio. Não havia identificação da entidade na fachada da sede, mas os seus muros estavam apinhados de cartazes do então candidato Felipe Lucas.
Dentro da academia, havia um painel com a foto do candidato e adesivos da campanha espalhados nas paredes, armários e até no bebedouro. Nos adesivos, Felipe Lucas aparecia ao lado de Elmar e dos candidatos a prefeito Bruno Reis (União Brasil) e vice Ana Paula Matos (PDT).
No dia em que a reportagem esteve na academia, o professor de boxe perguntou aos alunos no encerramento de uma aula em quem eles votariam para a vereador e fez elogios a Felipe Lucas. “Vou anotar o número dele”, respondeu uma das alunas.
Em uma postagem feita em 19 de setembro, um dos responsáveis pela Associação Nordeste Jiu Jitsu MMA, Renê Jardan, pediu votos para Felipe Lucas.
Também em Salvador, o Instituto Social Amor e Vida recebeu R$ 42 mil em equipamentos, incluindo freezer, fritadeira, liquidificador industrial e máquinas de costura. A entidade tem sedes no centro e no bairro de Mirantes de Periperi e oferece serviços de saúde, cursos profissionalizantes e promove shows evangélicos.
A organização social é comandada por Nerisvaldo Antonio da Silva, apoiador do vereador Fábio Souza (PRD), reeleito no último domingo (6). Em 20 de setembro, ele fez um evento de campanha com a presença de Elmar.
Codevasf diz que doações estão dentro da lei e não permite uso eleitoral
Procurada pela reportagem, a Codevasf afirma que “o eventual uso de bens doados pela Codevasf para fins políticos por parte das entidades beneficiadas configura conduta irregular e violação dos termos que regulam a doação. As doações da Companhia servem ao interesse social e ocorrem no contexto de iniciativas de desenvolvimento regional”
“Violações são apuradas com rigor e podem motivar a reintegração dos itens doados ao patrimônio da Codevasf”, segundo a estatal.
Quanto aos recursos empregados na aquisição das máquinas de costura para a Associação Nordeste Jiu Jitsu MMA, a Codevasf afirma que são originários do Orçamento Geral da União e não estão vinculados a emendas parlamentares. O processo de doação incluiu relatório de visita técnica, parecer técnico, parecer jurídico e laudo de conveniência socioeconômica, diz.
Os kits doados são destinados à profissionalização de mães de alunos da entidade e de moradores da região. A associação atende cerca de 500 crianças, adolescentes e jovens — a maioria de famílias de baixa renda e vulnerabilidade social, segundo a Codevasf.
O político Jefferson Joe disse à Folha que nunca pediu votos durante as atividades de capacitação no Instituto Reconstruir. Afirmou também que ele paga o aluguel dos espaços usados pela entidade e utiliza uma sala no local como escritório, mas negou ter usado o imóvel como comitê de campanha.
A Folha entrou em contato com um dos responsáveis pela Associação Nordeste Jiu Jitsu MMA, o lutador e professor de artes marciais Renê Jardan, mas ele alegou falta de tempo para conversar com a reportagem. Felipe Lucas não atendeu às ligações nem respondeu às mensagens.