De uma hora para outra, autoridades no governo e no Congresso demonstram preocupação com danos causados pelos sites de apostas, olimpicamente ignorados nos debates parlamentares
O governo e o Congresso parecem ter finalmente acordado para o imenso risco à saúde pública e à vida financeira dos brasileiros representado pela proliferação dos sites de apostas, conhecidos como “bets”. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por exemplo, qualificou de “pandemia” a “dependência psicológica” que as “bets” criam nos apostadores. Já o senador Omar Aziz (PSD-AM) pediu à Procuradoria-Geral da República que solicite ao Supremo Tribunal Federal a suspensão das “bets” até que esse mercado esteja totalmente regulamentado, porque segundo ele esses sites têm levado famílias “à ruína financeira, ao endividamento e, em muitos casos, ao suicídio, com alarmantes índices de desespero e falência pessoal”.
É reconfortante saber que nossas autoridades demonstram ter conhecimento dos problemas relacionados às tais “bets”, mas espanta que essa súbita tomada de consciência tenha se dado somente depois que os referidos sites foram legalizados. Como se sabe, o debate parlamentar que resultou na legislação, ocasião em que esse tema deveria ter sido devidamente e amplamente discutido, praticamente ignorou a opinião de especialistas na área de saúde mental – que são unânimes em apontar os danos associados às apostas.
Aparentemente, contudo, ninguém estava muito interessado nisso quando o assunto ganhou a pauta legislativa. O que importava, como se constata, era somente dar um verniz legal a uma realidade acachapante, em que as “bets”, a despeito de serem clandestinas, se tornaram praticamente onipresentes na vida dos brasileiros, seja por meio das apostas em si, seja porque patrocinam todos os clubes de futebol do País e aparecem em propagandas na TV de manhã, de tarde e de noite, 24 horas por dia, sete dias por semana.
Ninguém parecia muito preocupado com a hipótese de que as “bets” fossem usadas, por exemplo, para lavar dinheiro do crime organizado. Ao contrário: no Congresso, houve quem aproveitasse a onda das “bets” para propor a legalização até do jogo do bicho, outra notória lavanderia das máfias.
Já o Executivo, claro, salivava ao fazer as contas de quanto poderia arrecadar em impostos com as apostas. O governo obviamente fechou os olhos para os efeitos deletérios das “bets”, pois era um tema inconveniente para quem vive da mão para a boca e precisa desesperadamente de receita para cumprir a meta fiscal.
Agora, percebendo que ficou impossível ignorar a perspectiva de uma “pandemia” de ludopatia, nas palavras do ministro da Fazenda, as doutas autoridades resolveram endurecer o discurso contra as “bets”, e então criaram um novo problema: a lei que liberou os sites de apostas previa que as empresas interessadas tinham até o fim do ano para se adequar às exigências, mas agora, por conta do súbito endurecimento, esse prazo foi encurtado para outubro. Ou seja, temos aí mais um caso de insegurança jurídica – que poderia ser ainda pior se a proposta do senador Aziz, de suspender imediatamente os sites, fosse acatada.
Trocando em miúdos, o que nasceu torto não tinha mesmo como se endireitar. Durante muito tempo, os sites de apostas funcionaram no Brasil como se lei não existisse, contando com a tradicional anomia local. Deu certo: as “bets” se tornaram um fato consumado, restando às autoridades tirarem proveito, cada uma à sua maneira. Agora, fingem surpresa e afetam preocupação. A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), por exemplo, protocolou um pedido de CPI das “bets” ilegais, diante de evidências de que sites de apostas estão lavando dinheiro. Para a parlamentar, a CPI tem de investigar, ora vejam, “a descoberta de valores exorbitantes movimentados por essas plataformas, que poderiam estar sendo utilizadas para mascarar atividades ilícitas”. A sra. Thronicke, convém lembrar, foi uma das que votaram a favor da regulação das “bets”.
Este jornal reitera sua oposição à liberação das “bets”, bem como dos demais jogos de azar. Sendo liberadas, que as bets sofram as mais duras restrições, seja em publicidade, seja na proteção da saúde dos apostadores. E que haja a mais firme fiscalização, porque quem se habituou a atuar fora da lei precisa se convencer de que esta é para valer.