O descumprimento do X (antigo Twitter) de decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre bloqueio de contas na plataforma viola a Justiça em momento sensível, com a aproximação das eleições municipais e cenário possível de desinformação, de acordo com especialistas ouvidos pela Folha.
Segundo eles, a empresa precisa recorrer se não concorda com a decisão ou o valor da multa, mas deve colaborar com o devido processo legal. O risco, alertam, é que o descumprimento seletivo de decisões desequilibre o jogo democrático brasileiro, a depender do que possa vir a ser divulgado na plataforma sem que se tenha a certeza de sua colaboração com a Justiça brasileira.
Neste sábado (17), o empresário Elon Musk, dono do X, anunciou o encerramento do escritório da empresa no Brasil e culpou o ministro do Supremo Alexandre de Moraes, afirmando que ele ameaça de prisão seus funcionários e pratica censura. A rede, no entanto, continuará disponível para usuários no país.
Sem a representação no Brasil, as notificações para o cumprimento de medidas judiciais e eventuais sanções à empresa ficam mais difíceis.
O anúncio de interrupção das operações no país veio na sequência de uma decisão de Moraes que aumentou a multa aplicada ao X por descumprir decisão da corte pedindo o bloqueio de contas e indicou possível responsabilização pelo crime de desobediência.
A decisão faz referência a sete perfis de bolsonaristas na rede social, incluindo o senador Marcos do Val (Podemos-ES). Em junho de 2023, o STF autorizou operação de busca e apreensão contra o senador, além de bloqueios de suas redes sociais em razão de apuração sobre fala do político de que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) teria tentado coagi-lo a participar de um golpe de Estado.
Na última terça-feira (13), o perfil oficial do X divulgou a decisão sigilosa de Moraes com o pedido da nova suspensão. A plataforma falou em “censura de contas populares no Brasil” e disse acreditar “que o povo brasileiro merece saber o que está sendo solicitado a nós”.
Até a tarde de sexta-feira (16), a conta de Marcos do Val permanecia disponível na plataforma. Nela, há uma mensagem fixada em que o político diz denunciar “abuso de poder, censura e violações de direitos constitucionais no Brasil”, em referência à atuação de Moraes.
A respeito do descumprimento da decisão judicial, a Folha entrou em contato com a assessoria do escritório de advocacia Pinheiro Neto, representante legal do X no Brasil, que disse que não comentaria o caso.
Para Pedro Gueiros, professor de direito civil e novas tecnologias da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Ibmec-RJ, o descumprimento da decisão judicial é delicado sobretudo pela proximidade das eleições, uma vez que o país pode enfrentar cenário de desinformação nas redes sociais.
Ele afirma que o Poder Judiciário tem legitimidade para aplicar multas em caso de descumprimento de decisões e que a empresa precisa recorrer se está descontente com a medida ou com o valor da multa, não meramente descumpri-la.
Após o aumento da multa por Moraes na terça, o valor diário foi para R$ 200 mil por perfil, o que pode chegar até R$ 1,4 milhão por dia no caso das sete contas. A multa inicial estipulada pelo ministro era de R$ 50 mil por dia em caso de descumprimento.
Segundo Caio Machado, que é advogado, especialista em inteligência artificial e desinformação e pesquisador associado das universidades Harvard e Oxford, a postura do X reflete nova estratégia de modelo de negócio implementada após a empresa ter sido comprada por Musk.
Machado afirma que as plataformas costumam respeitar um princípio que prevê o gerenciamento das redes sem a adoção de uma postura editorial. Com a compra por Musk, entretanto, isso mudou: o X passou a assumir papel de curador, amplificando conteúdos e atores políticos específicos (Musk entrevistou Donald Trump, por exemplo) e censurando críticas ao empresário, diz Machado.
A nova conduta, entretanto, não foi acompanhada do que se espera de mídias de cunho editorial, como a prestação de contas ou a adoção de padrões profissionais de realização de conteúdo, uma vez que a plataforma continua a se apresentar meramente como rede social, na opinião do especialista.
A mudança na estratégia do X, afirma Machado, tem potencial para interferir nas eleições brasileiras, uma vez que a plataforma pode dar mais visibilidade a determinadas forças políticas em detrimento de outras, em cenário ainda mais complexo com o não cumprimento de todas as medidas estabelecidas pela Justiça.
“Por todos esses motivos, eu entendo que o Twitter pode ser uma ameaça importante para nossas eleições e não deixa de ser uma força externa pressionando o voto e também a nossa dinâmica política”, afirma Machado.
Para Rafael Viola, professor de direito e tecnologia do Ibmec-RJ e professor de direito da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), a desobediência da empresa à decisão judicial é um atentado contra a administração da Justiça.
Para ele, a proximidade das eleições, cujo primeiro turno ocorre no dia 6 de outubro, deixa o cenário de desobediência da empresa ainda mais controversa, uma vez que, a depender do que pode ser divulgado na plataforma sem que se tenha a certeza de sua colaboração com a Justiça brasileira, pode haver desequilíbrio ou dano irreparável ao processo eleitoral.
“Há um devido processo legal no Estado democrático [em caso de descontentamento com decisões judiciais]”, afirma Viola. ” É muito estranho admitir que uma empresa possa simplesmente se recusar a cumprir as decisões.”