Manobra de Arthur Lira com apoio tácito de petistas e bolsonaristas pautou texto que fragiliza aparato de investigação do crime organizado sem discussão no Congresso ou com a sociedade
Em meio ao tratoraço operado pela oposição contra o governo no Congresso, brotou uma pauta que uniu o sistema político como a frente ampla de Lula não foi capaz: o projeto proibindo que se fechem acordos de delação premiada com réus presos, alterando uma lei aprovada em 2013, durante o governo Dilma Rousseff.
O texto foi apresentado por um deputado aliado do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e apensado a uma proposta protocolada em 2016 pelo petista Wadih Damous.
Se lá atrás o objetivo era blindar o governo Dilma de uma possível delação do senador e líder do governo Delcídio do Amaral, preso em flagrante dias antes, agora a iniciativa poderia servir para anular a delação do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, Mauro Cid — ou ainda invalidar o testemunho de Ronnie Lessa, assassino confesso de Marielle Franco, que apontou como mandantes os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão.
A manobra colocou o governo Lula numa saia justa e fez os petistas se apressarem a acusar os bolsonaristas de oportunismo — como se a proposta original não tivesse sido, ela mesma, oportunista.
Tudo jogo de cena, revelado pela “votação simbólica”, sem placar, em que todos os partidos, com exceção do Novo, autorizaram a tramitação do texto em regime de urgência no plenário, sem nenhuma discussão prévia no próprio Congresso ou com a sociedade.
Se confirmada na semana que vem, a aprovação será o ato final de uma estratégia executada por Lira com a colaboração do petismo, de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do bolsonarismo, todos unidos para inviabilizar toda e qualquer denúncia contra políticos — ou, nas palavras do presidente da Câmara, acabar com a “criminalização da política”.
O plano começou desfigurando a Lei de Improbidade Administrativa, depois aprovou um projeto que reduz a quase nada a quarentena para políticos em estatais (ainda à espera de análise no Senado Federal) e, por poucos votos, não foi coroado pela “PEC da blindagem”, que dava aos parlamentares acesso amplo e irrestrito a inquéritos contra si próprios.
Na cruzada para se safar de investigações, lideranças de esquerda e direita prestam serviço inestimável às máfias que dominam do contrabando ao tráfico de drogas, passando pelas milícias, pelo terrorismo ou pelo tráfico de seres humanos.
É contra essas organizações criminosas que a delação premiada é mais útil. Nelas, impera a lei do silêncio. Muitas vezes, só depois de presos alguns criminosos se sentem compelidos ou até mesmo seguros para falar.
Por isso dezenas de países têm leis regulando a colaboração, prevista nas convenções da ONU contra o Crime Organizado Transnacional e contra a Corrupção, de que o Brasil é signatário.
O caso Marielle é um bom exemplo. Todos os delatores que acrescentaram informações úteis à investigação estavam na cadeia, até porque quem não estava preso estava morto. Ronnie Lessa fez delação premiada depois de cinco anos preso.
Se o projeto de lei estivesse valendo, o que se deveria fazer quando ele manifestasse a intenção de falar? Soltá-lo e ficar esperando voltar para contar tudo em liberdade?
Um dos argumentos mais usados contra a delação é o risco de um criminoso inventar histórias em troca de benefícios. A lei, porém, já prevê que as colaborações só valem se forem confirmadas por outras provas. Basta cumpri-la, e esse risco estará afastado.
Outra crítica comum e justa é contra prisões preventivas prolongadas que funcionam como forma de coação — definidas pelo ministro Dias Toffoli como “pau de arara do século XXI”. Mas nem Toffoli, ao anular as condenações de Marcelo Odebrecht, teve coragem de cancelar os efeitos de sua delação.
Ninguém tampouco imagina que o Supremo vá desfazer a delação de Cid, que passou três meses em prisão preventiva e ainda não foi sequer denunciado, mas só deixou a cadeia depois de fechar um acordo.
Nesta semana, o governo foi obrigado a demitir um secretário do Ministério da Agricultura por suspeitas de fraude no leilão de arroz, um político a quem executivos da J&F já disseram em delação premiada ter entregado R$ 250 mil dentro do próprio ministério, no governo Dilma.
Neri Geller chegou a ser preso e depois solto em 2018, mas o caso foi convenientemente esquecido na montagem do governo Lula 3.
Tudo isso mostra que, com ou sem lei, o sistema político já se garante. O que se quer, no fundo, é a blindagem total e definitiva, ainda que seja preciso destruir todo o sistema construído pelo Estado brasileiro para investigar máfias que provocam insegurança e deterioração do tecido social.