Deslinde do caso Marielle Franco expôs um Estado carcomido, indissociável do crime organizado por sua captura por agentes públicos que deveriam zelar pelo bem da sociedade, e não traí-la
O País agora sabe, após uma angustiante espera de mais de seis anos, sobre quem, afinal, recai a gravíssima suspeita de ter ordenado a morte da vereadora carioca Marielle Franco e por qual motivo. O que foi anunciado oficialmente pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, na tarde do domingo passado, é simplesmente assustador. Revelou-se um Estado a serviço do crime organizado. Ou uma organização criminosa que sequestrou o Estado para a consecução de seus objetivos espúrios.
A Polícia Federal (PF), informou o ministro, concluiu que os “idealizadores” do crime foram o deputado federal Chiquinho Brazão (União-RJ) e seu irmão, o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) Domingos Brazão. O “planejador”, ainda segundo a PF, foi o delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil fluminense, ninguém menos que o principal responsável pela investigação do caso na esfera estadual – âmbito apropriado, em condições normais, para a condução do inquérito à luz da Constituição.
O deslinde do caso Marielle expôs o Rio como um Estado carcomido em sua estrutura por um consórcio delinquente formado por políticos de variadas afiliações, policiais civis e militares e, claro, milicianos. Tal é o grau de penetração desses criminosos no aparato estatal que, hoje, é impossível dissociar a política no Estado dos interesses econômicos das próprias organizações criminosas, que operam como uma verdadeira máfia. O que se viu, agora com contornos mais nítidos, é um Rio sequestrado por agentes públicos que deveriam zelar pelo bem da sociedade, e não traí-la.
O fato de uma parlamentar ter sido brutalmente assassinada em pleno exercício do mandato – em atentado que também matou seu motorista, Anderson Gomes, e feriu sua assessora, Fernanda Chaves – já era chocante por si só. Mas, como se isso não bastasse, ao longo das quase 500 páginas do relatório final da PF, desfiou-se uma teia criminosa que se espraiou por múltiplas esferas da política no Estado do Rio. Ao que tudo indica, Marielle e Anderson foram vítimas circunstanciais de um grupo político associado a policiais e milicianos que pretendia demonstrar, sem qualquer sutileza, que fim estaria reservado a todos os que ousassem atravessar seu caminho.
A PF foi clara ao afirmar que a elucidação da morte da vereadora Marielle Franco pode ser o ponto de partida para a conclusão de uma série de outras investigações sobre o submundo da política no Rio. Como muito bem destacou a pesquisadora Joana Monteiro, coordenadora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança da FGV-RJ, é preciso “parar de dizer que o crime organizado é um poder paralelo” no Estado. De fato, a política fluminense, salvo honrosas e corajosas exceções, parece estar umbilicalmente ligada aos interesses das milícias, que, como se viu pelas investigações da PF, extrapolaram as fronteiras do Estado e já se fazem representar até mesmo no Congresso Nacional.
Nesse sentido, e até pelo histórico de suspeitas que já recaíam sobre os irmãos Brazão, não chega a ser surpreendente a implicação de ambos no caso Marielle. Já a participação direta do delegado Rivaldo Barbosa, como indica a PF, no “planejamento” da ação levada a cabo pelos executores Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, ao contrário, é um choque. Não só pela frieza de Barbosa, que chegou a consolar a família de Marielle poucas horas após seu assassinato, mas, principalmente, por se tratar, à época dos fatos, do principal servidor público com a missão de livrar a sociedade da mesma organização criminosa da qual ele ora é suspeito de pertencer.
A serem comprovados os indícios de autoria e materialidade apresentados contra ele pela PF, o delegado Rivaldo Barbosa teria colocado a Polícia Civil do Rio à disposição de milicianos, bicheiros e políticos dispostos a pagar caro por sua deliberada omissão funcional, deixando a sociedade fluminense à mercê de seus piores algozes. Caríssimo, portanto, deve ser o preço a ser pago agora por cada um desses traidores do múnus público.