Logo após o Brasil ter se livrado da experiência nefasta da combinação de militarismo (circo) e religião (pão) no poder com Bolsonaro, na capital de Goiás, onde ele ganhou de Lula de lavada e, que, por isso, tem merecido constantes visitas do mesmo, esse modelo de governança ainda está vigente, causando impactos negativos para o caráter participativo do desenvolvimento urbano e da qualidade funcional da administração pública. Goiânia, atualmente, é governada por um ex-pastor da Igreja Universal e tem sua Câmara de Vereadores presidida por um guarda civil metropolitano da AGCM, o vereador Romário Policarpo (Patriotas). Essa configuração política, que resultou em alianças, mesmo que instáveis, entre os representantes desses dois poderes, tem permitido um mínimo de governabilidade para aprovação de pautas bombas, como empréstimos eleitoreiros, o aumento de tributos e revisões anacrônicas do Plano Diretor, por um prefeito impopular, que assumiu a prefeitura após a morte de titular ex-governador Maguito Vilela por Covid-19.
Nesse período em que a ACGM se tornou a guarda patrimonial da governabilidade do prefeito, houve uma saturação do seu papel e suas prerrogativas, para além de suas funções legais, comprometendo o Estado Democrático de Direito.
No dia 14 de março, pelo prefeito Rogério Cruz (Republicanos), foi sancionada uma lei que institui do ‘Dia da Igreja Universal do Reino de Deus’ no calendário municipal, mais precisamente, no dia 9 de julho, data em que essa instituição evangélica foi fundada (9 de julho de 1997). Como justificativa para tal cortesia merecida com seu eleitorado, o prefeito descreveu que, desde 1989, a Igreja do Bispo Edir Macedo, está “realizando um trabalho social e espiritual muito forte” com “benefícios incomensuráveis para a cidade”.
Apesar do evangelhismo do prefeito simbolizar, a princípio, para a maioria do eleitorado, em sua maioria, conservador, bons predicados pessoais, a verdade é que ele tem sido como pecador dos mandamentos da boa governança e boa gestão, em termos de políticas públicas urbanas e sociais. Nesse caso, nem mesmo através de termos de colaboração/fomento e/ou acordos de cooperação com organizações da sociedade civil, muitas vezes, de cunho religioso. As Igrejas têm importantes projetos sociais, compensando as lacunas do Estado, por vezes, mas não foi o espírito evangélico que predominou durante os quase 4 anos em que Goiânia foi sendo apresentado ao político paraquedista.
A tendência de fidelidade quase automática dos neopentecostais ao prefeito “bom pastor” pode ser contraproducente, pois que, enquanto, cidadão necessitamos de ações concretas para os problemas de urbanidade de uma metrópole complexa e caótica, como se tornou Goiânia. O relativo cerceamento da liberdade eleitoral em algumas Igrejas Católicas e Evangélicas, como se viu nas eleições de 2022, é uma forma subliminar de voto de cabresto, porque afetando a psicologia social do sujeito, por meio de conteúdo político disfarçado de religioso, interfere-se, até mesmo, no caráter secreto da votação, afinal: “Deus está vendo, ele é onipresente”.
Consolidado o apoio político com os evangélicos, apesar de dissidências internas querendo fagocitá-lo, para o quimérico projeto de reeleição de Rogerito “sem Noção” em 2024, tem sido mais oneroso para o prefeito sanar de vez as animosidades com sua base aliada, mormente, com o os “guardiões” do Cruz (menos leais do que os do Crivella no Ri9. Os atritos mais significativos entre o prefeito e o vereador quixotesco Policarpo remontam à junho de 2022, quando o prefeito enviou à Câmara projeto para mudança no Plano de Carreira da Guarda Civil Municipal, que acabou recebendo emendas do Presidente Romário sobre mudança de funções, permitindo a eles atuarem na fiscalização das áreas ambientais, sanitárias e engenharísticas. O que obrigou a Procuradoria Geral do Município recomendar, por inconstitucionalidade, os vetos dos artigos da Lei Complementar 353, aprovadas por Romário no dia 18 de maio.
Com a Crise do Lixo de outubro de 2022 e CEI (Comissão Especial de Inquérito) da COMURG de março de 2023, por possíveis irregularidades administrativas e financeiras, causadas pela má gestão do executivo, foi a vez de Romário blindar-se das trapalhadas do prefeito. A insatisfação mútua instaurou uma espécie de guerra fria entre esses dois poderes. Tal conjuntura não impediu de o vereador demonstrar gratidão pela valorização da gestão Cruz para com a categoria que representa. O fato é que, em função também, de danças de cadeiras por secretarias e até pela própria prefeitura, já que Policarpo pode insurgir como se candidato ou vice a prefeito de Goiânia, Cruz está cada vez mais refém dos guardas, que, até então, abençoavam seu governo, depois que ele caiu em desgraça após a saída do MDB das secretarias da prefeitura, comandada pelo filho de Maguito e presidente do MDB goiano, Daniel Vilela.
Usando o argumento da independência dos poderes, quando convém, o presidente Romário, artilheiro em anos a frente da casa de leis municipal, parece fazer do legislativo uma catapulta para consolidar um projeto político de insegurança política e pública, que oficializa a Guarda Municipal, como um poder paralelo em Goiânia, acima da Prefeitura, da Polícia e da Lei, atuando por meio de micropoderes para fazer prevalecer as prática-discursivas autoritárias de uma única categoria do serviço público, em detrimento do bem comum e da coletividade. O fato é que não foi por obra divina que ele revertera a Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo partido DC, questionando a reeleição da presidência da Câmara e da Guarda Municipal. O Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) decidiu, estranhamente, pela validação de um terceiro mandato à Presidência da Câmara de Vereadores, realizado, estranhamente, em 2021, de forma, antecipatória, sem a participação de muitos vereadores, que foram eleitos somente em 2022.
Em matéria do Jornal Opção de 11 de maio, intitulado “Sem limites, GCM destrói mais uma investigação”, são apresentados um quadro geral e específico da crise institucional na Prefeitura causada pela atuação ilegal e “milicialesca” da Guarda Municipal, a partir do caso do furto dos cartões do programa social municipal, que acabou levando à exoneração da Diretora da Secretaria de Políticas para Mulheres, Regina Pereira Vargas Silva. Isso por terem maculado a investigação sobre os desvios de R$ 28,8 mil dos cofres públicos, em função do sumiço de cartões do programa “Renda Família Mais Mulher”, atuando sem mandado judicial para busca e apreensão, e gravação oculta, na casa do suposto funcionário desviante.
Amarrado, politicamente, à Romário, que também já foi presidente da Associação dos Servidores da Guarda Civil Metropolitana de Goiânia (ASGMG), Rogério Cruz tratou, na pessoa de seu chefe de gabinete, José Firmino, de colocar panos quentes no episódio dos cartões, sem reprimendas institucionais, saindo em defesa da atuação da Guarda, apesar das evidências de suposto abuso de poder e desvio de finalidade por parte dos participantes da questionável operação. Visa, assim, manter a ala armada da prefeitura na base aliada para pavimentar seus desejos de ter alguma popularidade até o final do mandato.
Sabemos, que se isso ocorrer, não será em troca de datas comemorativas como parecem se contentar os evangélicos, que já tem a chance de perceber que Cruz é um evangélico autoritário como Bolsonaro, que governa com a bíblia em uma mão e a arma na outra. Possíveis casos de má conduta por parte da Guarda, em inobservância aos princípios da administração pública e do direito judicial, poderão ter um incremento expressivo, se eles se tornarem cabo eleitoral do prefeito por mais 4 anos. Quanto maior a dependência política de Romário, maior será a sensação de impunidade de alguns guardas irresponsáveis, que mesmo bancando os xerifes do velho Centro-Oeste, estão mais para “uma dupla de dois tiras” (“Fucker and Sucker”), formados em uma “Loucademia de Polícia”.
Ao contrário do oscilante e voluntarioso suporte de Romário, em contrapartida, Rogério conta com a eterna aliança com seu Sancho Pança verdadeiramente leal, o ex-vereador e deputado estadual Clécio Alves (Republicanos), que indicou seu filho, Luan Alves, para o cargo de secretário da Agência de Meio Ambiente, tendo, posteriormente, presidido a cerimônia de posse em 2023 da primeira dama Thelma Cruz, quando ela foi convidada pelo presidente da Alego, deputado Bruno Peixoto (UB), para a Secretaria de Assistência Social da Procuradoria da Mulher da Assembleia. Clécio costuma dedicar jocosos discursos inflamados na defesa dele, como se fosse ele o pastor, e Rogério, o messias iluminado na pele de prefeito ineficiente para provar nossa bondade filantrópica.
Como não poderia deixar de ser, o advogado do pastor é também o do guarda, já que no 12 de maio de 2023, na semana em que a Guarda sofria o impacto negativo do caso dos cartões “Renda Família Mais Mulher”, foi Alves quem organizou homenagem no aniversário da Guarda na Assembleia, com a diplomação de honra ao mérito para 80 profissionais da GCM, tornando-se, assim, o guarda dos guardas. A sua lealdade com a categoria profissional do Romário não é recente, já tendo sido provada, quando, então, Vice-presidente da Câmara Municipal de Goiânia, na época no MDB, apresentou um PL para substituir o nome de Washington Novaes, uma sumidade no jornalismo ambientalista internacional, do parque ecológico do Conjunto Vera Cruz 2 (Zona Oeste), por Sargento David Luiz Rodrigues, pai do guarda municipal Leder Pinheiro, que trabalhava no gabinete de Clécio na Câmara de Vereadores em 2021.
Apesar do Grupo de Apoio ao Prefeito (GAP), criado pelo marqueteiro Jorcelino Braga ter sido encerrado em dezembro com saída do seu criador, segundo anunciado por outro integrante, o vereador Policarpo, o mesmo lutou para garantir, mesmo que com atraso de meses, só em março de 2024 a aprovação da Lei 407/2023, do pedido questionável e questionado, juridicamente, de empréstimo de R$ 710 milhões para a Prefeitura às vésperas de ano eleitoral.
O fato é que o guarda costas Policarpo quer carreira solo e não precisará carregar o Cruz, cuja imagem tem sido amaldiçoada por fazer da prefeitura um cassino de Vegas, com constantes críticas do Bloco Parlamentar Vanguarda, ficando somente com o bônus de aproveitar a pajelança de dinheiro público para investimentos em obras e ações municipais em ano eleitoral. Se o prefeito não obtiver êxito na parceria com o representante da AGCM (já que na companhia de urbanismo, a corrupção torna qualquer apoio, uma ameaça), seu triste fim, sem o patriota Policarpo na Quaresma e sua covardia polivalente, é dado como certo. Na hipótese de abandono do presidente Romário, restará ao prefeito, pelo menos, chegar até o final do mandato, para cumprir tabela, já que poucos ainda creem em sua ressureição política.
O envolvimento clientelista das forças de segurança e de espiritualidade na política são motivos de pesar porque sempre têm se mostrado fontes de desvirtuamento do papel do Estado e da Igreja, que é o de proteger o corpo e alma da população. Entre a Espada e a Cruz, Goiânia segue à mercê dos interesses comezinhos e coronelísticos de grupos políticos altamente idiossincráticos, que não tem um projeto de cidade inclusiva, mas, sim, a criação de guetos laborais e espirituais, que funcionem como feudos de arbítrios autoritários estatais (policiais) e fanatismos eclesiásticos. Entranhados no patrimonialismo da prefeitura e no psiquismo do prefeito, utilizam-se das ramificações institucionais de suas entidades em todo território municipal, não para servir à população (próximo) por altruísmo fraternal ou ético sincero, mas, sim, a seu próprio grupo de poder (si mesmo), o que nos leva a “crer” que não só saber é poder, como defende Foucault, mas fé também.
Concluindo: Os agentes da força e da fé não devem estar a serviço de um político ou de outro, mas, sim, da população goianiense em toda sua diversidade ideológica e religiosa, haja vista, que todos devem ter direito à livre manifestação e à liberdade de crença. Na verdade, os guardas do Cruz e da cruz, atuam para que dois grupos tenham, deliberadamente, mais poder e direitos, em detrimento de outros, com o objetivo oculto de privilégios profissionais ou proselitismos religiosos.
*Frederico Assis Brasil é professor Urbanidade na UFSJ, com doutorado no Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da UFRJ e idealizador do Oposição com Liderança.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.