O nebuloso processo, parte de uma estratégia dos conservadores para realinhar a inclinação progressista das universidades de elite, abalou o ensino superior
Ao terminar o almoço no recinto privativo diante do Salão Oval, em 1.º de abril, o presidente Donald Trump apresentou uma proposta surpreendente: e se o governo simplesmente cancelar completamente os quase US$ 9 bilhões prometidos à Universidade Harvard?
A campanha do governo para expurgar a ideologia “lacradora” dos campi universitários já havia forçado a Universidade Columbia a fechar um acordo. Agora, a Casa Branca estava de olho na universidade mais antiga e rica do país.

“E se não os pagarmos?”, perguntou Trump casualmente, de acordo com uma pessoa familiarizada com a ponderação do presidente, que falou sob condição de anonimato para descrever a conversa privada. “Não seria legal?”
Esse momento enfatizou a abordagem agressiva e particular que continua a moldar uma das políticas mais determinantes do novo governo.
Trump e seus principais conselheiros estão manobrando enormes quantias de verbas federais para pesquisa com objetivo de mudar a inclinação ideológica do sistema de ensino superior, que eles consideram hostil aos conservadores e destinado a perpetuar o progressismo.
Seu esforço foi energizado pelos protestos nos campi contra a resposta de Israel ao ataque terrorista de outubro de 2023 perpetrado pelo Hamas, manifestações nas quais estudantes judeus foram assediados em certos momentos. Logo após assumir o cargo, Trump formou a Força-Tarefa de Combate ao Antissemitismo, que está investigando as principais universidades em busca de possíveis violações de direitos civis e fazendo com que as instituições a reavaliem suas políticas.
A iniciativa tem como apoio a influência de Stephen Miller, subchefe de gabinete de Trump para políticas públicas e arquiteto de grande parte da agenda doméstica do presidente.
O nebuloso processo está desestabilizando campi em todo o país, fazendo instituições de elite, há muito acostumadas a operar com relativa liberdade em relação a Washington, sofrer com um ataque político contundente que figura na vanguarda de uma guerra cultural maior.
A força-tarefa inclui cerca de 20 funcionários do governo, a maioria não identificada publicamente sob a justificativa de possíveis riscos à sua segurança. A equipe se reúne semanalmente em uma sedes de agências federais em Washington para discutir relatos de discriminação em campi universitários, analisar financiamentos para universidades, redigir recomendações e comunicar constatações para Trump.
Em paralelo, alguns poderosos conselheiros na Ala Oeste, incluindo Miller, agiram separadamente para bloquear o financiamento de grandes instituições sem o escrutínio formal da força-tarefa.
Esses assessores discutiram reservadamente sobre tombar uma universidade de alto nível para sinalizar sua seriedade, segundo afirmaram duas fontes familiarizadas com as conversas. E eles já suspenderam parcialmente o financiamento de pesquisas para mais que o dobro de instituições de ensino do que a força-tarefa, de acordo com fontes familiarizadas com o trabalho.
Este relato sobre o funcionamento interno da campanha de pressão sobre o ensino superior baseia-se em entrevistas com mais de duas dúzias de altos funcionários do governo, líderes universitários e consultores externos de ambos os lados. Muitos falaram sob condição de anonimato para discutir conversas privadas ou por temerem represálias contra seus campi.
A Casa Branca obteve uma vitória antecipada com a concordância por parte da Universidade Columbia, no mês passado, em relação a uma lista de exigências que incluiu o endurecimento de políticas disciplinares e a instalação de uma nova supervisão sobre o departamento de estudos de Oriente Médio, Sul da Ásia e África da universidade.
Desde então, o governo Trump expandiu seu foco para outras seis universidades de elite no país, incluindo Harvard.

Quando Trump discutiu reservadamente a suspensão de todos os pagamentos a Harvard, a força-tarefa já havia aberto uma revisão de financiamento. Isso levou o governo a enviar à universidade uma lista de exigências na sexta-feira, incluindo a contratação de um profissional externo “para auditar programas e departamentos que mais fomentam o assédio antissemita ou refletem sequestros ideológicos”. O governo também insistiu que Harvard altere as políticas de contratação e admissão em departamentos que “carecem de diversidade de pontos de vista” e “encerre imediatamente” qualquer programa relacionado a diversidade, equidade e inclusão.
Harvard afirmou na segunda-feira que não concordaria. O reitor da universidade, Alan Garber, escreveu em carta aberta declarando que a maioria das exigências do governo “constitui uma regulamentação governamental direta sobre ‘condições intelectuais’ em Harvard”. A universidade, acrescentou Garber, “não abrirá mão de sua independência nem de seus direitos constitucionais”.
Numa outra carta, dois advogados externos que representam Harvard afirmaram a autoridades do governo que a universidade “não está preparada para concordar com exigências que extravasem a autoridade legal deste ou de qualquer outro governo”.
Horas depois, a força-tarefa anunciou o congelamento de mais de US$ 2,2 bilhões em financiamentos e contratos para Harvard.
O escopo da campanha do governo agora está prestes a se ampliar. O Departamento de Educação alertou 60 universidades sobre a possibilidade de sofrerem sanções em razão de investigações sobre acusações de antissemitismo em andamento.
A iniciativa ocorre num momento em que a confiança pública no ensino superior despencou na última década, de acordo com uma pesquisa Gallup realizada em julho. O declínio foi motivado principalmente por preocupações sobre faculdades que promovem agendas políticas, não ensinam habilidades relevantes e seus custos, segundo mostrou a pesquisa.
Ainda assim, líderes universitários ficaram surpresos com o ataque rápido e sem uma ideia clara a respeito da maneira com que o governo Trump escolhe seus alvos ou sua base para formular as punições, nem sobre como reagir. Muitos consideram a iniciativa um ataque generalizado à liberdade acadêmica com o objetivo de esmagar a influência do ensino superior.
“Nunca vi nada parecido com esse grau de intromissão do governo, esse nível de intrusão na tomada de decisões acadêmicas”, disse Lee Bollinger, que foi reitor da Universidade de Columbia por 21 anos e mais outros cinco à frente da Universidade de Michigan.
Por sua vez, autoridades do governo Trump e seus aliados afirmam que estão tentando tornar responsável sobre suas ações um sistema que educa cerca de 15 milhões de estudantes de graduação e recebe anualmente cerca de US$ 60 bilhões em verbas federais para pesquisa.
“Não buscamos apenas entrar com processos judiciais — nós queremos impor uma mudança cultural em relação à forma que os judeus americanos são tratados nos campi universitários”, disse em entrevista a procuradora-geral Pam Bondi, que integra a força-tarefa.
Mas o esforço vai além do combate ao antissemitismo, com escolas virando alvo em razão de programas de diversidade e apoio a atletas transgênero. Na visão de alguns dos conselheiros mais próximos e de importantes doadores de Trump, os esquerdistas tomaram o controle das instituições mais poderosas dos Estados Unidos, incluindo pilares do ensino superior, e retomá-las é fundamental para o futuro da civilização ocidental.
“As universidades parecem todo-poderosas e vinham agindo como se fossem todo-poderosas, e finalmente nós estamos revelando que somos capazes de atingi-las onde dói”, afirmou em entrevista o ativista conservador Christopher Rufo, que defende a estratégia.
‘Derrotem os radicais’

Durante a campanha presidencial do ano passado, Trump extrapolou plataformas e descreveu em seus comícios uma nação que considerava repleta de discriminação contra os conservadores.
E, para ele, em nenhum lugar a injustiça política era tão disseminada quanto nos campi universitários administrados por “maníacos e lunáticos marxistas”.
Semanas após iniciar sua terceira campanha presidencial, Trump anunciou uma “iniciativa de políticas para liberdade de expressão”, prometendo cortar verbas federais para pesquisa e financiamento de empréstimos estudantis em universidades envolvidas no que ele definiu como “atividades de censura ou interferências eleitorais”.
Seis meses depois, Trump reclamou de “discriminação racial” no ensino superior, sugerindo que as universidades eram cada vez mais hostis a estudantes brancos. Ele prometeu abrir investigações relativas a direitos civis em instituições que promovessem diversidade e redobrou essas ameaças quando a Suprema Corte rejeitou ações afirmativas em admissões a universidades.
Ao mesmo tempo, Miller, o ex-conselheiro de Trump, trabalhava sobre questões semelhantes na a organização sem fins lucrativos America First Legal, que ele fundou durante o governo Biden. O grupo processou as Universidades de Nova York e Northwestern, acusando-as de discriminação contra homens brancos.
Trump voltou-se com mais força para o combate ao antissemitismo como um grito de guerra político após 7 de outubro de 2023, quando militantes do Hamas lideraram um ataque que matou mais de 1,2 mil pessoas em Israel, no dia mais mortífero para judeus desde o Holocausto. em seguida veio a guerra em Gaza e meses de protestos, particularmente entre estudantes pró-palestinos em campi universitários. Milhares de manifestantes foram presos enquanto ocupavam gabinetes de reitores, assediavam estudantes judeus, erguiam acampamentos improvisados e interrompiam cerimônias de formatura.

Durante a campanha eleitoral, Trump descreveu os protestos em termos pessoais, alegando que “lunáticos furiosos” protestavam nos campi para desviar a atenção de questões imigratórias centrais à sua campanha.
“A todos os diretores de faculdades”, disse Trump em um comício em Waukesha, Wisconsin, “vençam os radicais e devolvam nossos campi para os alunos normais”.
A força-tarefa de combate ao antissemitismo foi anunciada em 1.º de fevereiro, com o objetivo declarado de “erradicar o assédio antissemita nas escolas e nos campi universitários”. As métricas exatas para definir esse progresso permanecem obscuras.
O governo se recusou a identificar todos os membros do grupo, mas seu principal líder é o conselheiro-sênior da divisão de direitos civis do Departamento de Justiça Leo Terrell. Presente nas redes sociais e no programa “Hannity”, da Fox News, Terrell é um dos favoritos de Trump.
A face pública da força-tarefa tem sido, em grande medida, a secretária de Educação, Linda McMahon. Outros membros identificados incluem Josh Gruenbaum, alto funcionário da Administração de Serviços Gerais, e Sean Keveney, conselheiro-geral interino do departamento de Saúde.

Coordenada pela divisão de direitos civis do Departamento de Justiça, a força-tarefa também inclui funcionários da Comissão para a Igualdade de Oportunidades de Emprego. A comissão está investigando “dezenas” de denúncias de antissemitismo em campi universitários que poderiam se tornar parte da investigação da força-tarefa, de acordo com dois membros da iniciativa. O grupo também inclui especialistas em dados, advogados de direitos civis e ex-acadêmicos que trabalham no governo.
Em fevereiro, os membros da força-tarefa anunciaram um foco especial sobre 10 universidades: Columbia; George Washington; Harvard; Johns Hopkins; Nova York; Northwestern; Califórnia, Berkeley; Califórnia, Los Angeles; Minnesota; e Sul da Califórnia.
A força-tarefa afirmou que planejava visitar todas as instituições e realizar reuniões com gestores, alunos, autoridades policiais locais e membros da comunidade.
Ao começar seu ataque contra Columbia e Harvard, a força-tarefa estabeleceu o tom.
O objetivo, disse um alto funcionário do governo, era usar universidades de elite como exemplo para intimidar as outras instituições de ensino superior.
A Casa Branca também se concentrou em outras cinco escolas — as Universidades Brown, Cornell, Northwestern, Pensilvânia e Princeton, de acordo com pessoas familiarizadas com o processo.
Todas tiveram milhões em financiamento federal suspensos, ameaçando projetos, laboratórios e empregos, e rompendo um pacto multigeracional entre o governo e as universidades. Desde a 2.ª Guerra, as faculdades têm sido o cerne do sistema de pesquisa americano.
O montante de financiamento para pesquisa direcionado a cada universidade variou bastante, e há poucos indícios sobre as maneiras por meio das quais as autoridades estão chegando a valores específicos.
Um membro da força-tarefa disse que os valores foram determinados como parte das deliberações dos membros do grupo, que ponderaram sobre o volume de financiamentos e contratos prometidos para as instituições, disparidades em relação a políticas disciplinares e a disposição da instituição em adotar mudanças e avançar no sentido desses objetivos.
Em última análise, o grupo recomenda a Trump se o governo deve cortar financiamentos, como fez antes de cancelar os contratos com a Columbia no mês passado, de acordo com fontes familiarizadas com o processo.
Nesse caso, a força-tarefa notificou a universidade em 3 de março que estava reconsiderando as verbas. Quatro dias depois, em 7 de março, o grupo citou o “fracasso contínuo da Columbia em acabar com o assédio persistente contra estudantes judeus” e cancelou US$ 400 milhões em contratos e financiamentos.
McMahon entregou a notícia pessoalmente naquele dia a Katrina Armstrong, que desde então deixou seu cargo como presidente interina da Columbia. Logo depois, disse McMahon, líderes de instituições de ensino como Harvard e Yale agendaram reuniões com ela.
“Queriam garantir que soubéssemos que eles estavam reconsiderando suas políticas”, disse a McMahon em entrevista. “Os reitores com que conversei foram muito cordiais, mas muito sinceros em seus esforços para garantir que estão fazendo todo o necessário em seus campi para proteger os alunos.”

Algumas universidades só souberam que estavam sob escrutínio quando ordens de paralisação de pesquisas financiadas pelo governo federal começaram a chegar. Em um campus, um membro do corpo docente ouviu de um responsável por programas do governo que um corte no financiamento para pesquisa era iminente — o que deixou os líderes do campus em alerta.
J. Larry Jameson, reitor da Universidade da Pensilvânia, disse no mês passado que a universidade soube “por meio de vários veículos de comunicação” que o governo Trump estava suspendendo cerca de US$ 175 milhões para projetos de pesquisa. O reitor de Brown enviou um memorando sobre “rumores preocupantes” pouco antes de autoridades da Casa Branca anunciarem, com pouca publicidade, que o governo planejava suspender o financiamento de US$ 510 milhões.
Depois que o website conservador The Daily Caller noticiou que US$ 210 milhões em financiamento para pesquisa em Princeton foram suspensos, o reitor da universidade, Christopher Eisgruber, escreveu em um e-mail ao campus que “a justificativa completa para essa ação ainda não está clara”. Quando o New York Times solicitou um comentário à Casa Branca, uma porta-voz respondeu com um link para uma publicação de um repórter do Daily Caller nas redes sociais e apenas três palavras: “Isso é verdadeiro”.
Alguns gestores universitários afirmaram que a incerteza complicou considerações sobre contestações judiciais. Eles se sentem no escuro, disse um funcionário da universidade.
Eisgruber escreveu na revista The Atlantic no mês passado que as medidas do governo Trump contra a Columbia estavam criando “a maior ameaça às universidades americanas desde a Ameaça Vermelha da década de 50″.
“Há aqui um padrão de intrusões na liberdade acadêmica de universidades fortes que deveria ser motivo de preocupação para todos os americanos”, disse ele em entrevista ao podcast “The Daily”, do Times.
Na luta por autodefesa, alguns líderes universitários recorreram a ativistas judeus para contestar o que consideram uma definição excessivamente ampla de antissemitismo por parte do governo.
Outras instituições se concentraram em se aproximar de Trump por meio de aliados do presidente. Harvard contratou como lobista Brian Ballard, ex-chefe de finanças da campanha de Trump, cuja empresa já empregou Susie Wiles, chefe de gabinete de Trump, e Bondi, a procuradora-geral. Dartmouth contratou um ex-assessor jurídico do Comitê Nacional Republicano como principal advogado da universidade.
Mas não está claro o quanto essas conexões ajudarão. Os principais membros da força-tarefa envolvidos no assunto na Ala Oeste são Miller; Vince Haley, chefe do conselho de política interna; e May Mailman, estrategista sênior de políticas — todos tidos como guerreiros linha-dura na batalha cultural e resistentes a lobbies.

A longo prazo, o objetivo de Trump e seus aliados é perturbar permanentemente o mundo elitista do ensino superior. “Queremos atrasá-los uma ou duas gerações”, disse Rufo.
O esforço do governo deixou até alguns aliados próximos de Trump perplexos, preocupados com a possibilidade da campanha de pressão abrir um precedente preocupante para governos futuros que, por exemplo, decidam “erradicar” o sexismo nos campi universitários ou pessoas intolerantes nos corpos docentes. Quem decide que pessoas se enquadram em qual categoria e quando?
Dentro da Casa Branca, essas preocupações são descartadas. Esse tipo de pensamento atrasou o primeiro governo Trump, dizem autoridades, afirmando que não se preocupam com o que a esquerda política poderá fazer no futuro e que estão focadas, em vez disso, em implementar mudanças a longo prazo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
Por Estadão