Boa parte dos pesquisadores acredita que o aquecimento global está mais rápido do que o previsto; outros climatologistas dizem que recente alta das temperaturas está ligada ao fenômeno El Niño
Os maiores especialistas mundiais em mudanças climáticas não têm dúvidas de que o planeta está aquecendo. Nos últimos meses, porém, surgiu uma divergência importante. Boa parte dos cientistas acredita que, por alguma razão ainda não totalmente explicada, esse aquecimento está bem mais acelerado do que o previsto e um cenário climático catastrófico pode estar muito mais próximo do que se esperava.
Outra parcela dos pesquisadores, no entanto, discorda. Segundo eles, a excessiva elevação da temperatura média da Terra, sobretudo nos últimos dois anos, está relacionada a fenômenos climáticos passageiros, como o fenômeno El Niño, responsável pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico e aumento das temperaturas.
A Organização Meteorológica Mundial (OMM) confirmou que 2024 foi o ano mais quente da história, com temperatura média global de 1,55ºC acima da média registrada antes da Revolução Industrial (meados do século 19). Esse aumento está diretamente ligado à elevação da concentração atmosférica de gases gerados pela queima de combustíveis fósseis e à ocorrência de um El Niño forte em 2023.
O ano também foi marcado pelo aumento de fenômenos climáticos extremos, como enchentes, secas e até mesmo incêndios fora de controle. No Brasil, alguns exemplos são a tempestade recorde que devastou o Rio Grande do Sul, em maio, e a estiagem recorde, seguida de uma escalada de incêndios, no Pantanal e na Amazônia.
Este ano já começou com o espalhamento rápido do fogo em Los Angeles, nos Estados Unidos, que causou destruição inédita, sobretudo ao considerar que o Hemisfério Norte está no meio do inverno.
Segundo os cientistas, só uma redução drástica das emissões de gases do efeito estufa em todo o mundo poderia limitar a elevação das temperaturas e dos fenômenos extremos. Com a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris – anunciada já no primeiro dia da gestão Donald Trump – essa perspectiva parece cada vez mais distante.
O pacto climático global prevê reduções significativas das emissões de gases estufa até 2050 para manter o aumento médio da temperatura global em, no máximo, 1,5º C – elevação alta, porém gerenciável.
Ocorre que, pelo menos nos últimos 12 meses, o aumento da temperatura média global já atingiu esse patamar. Embora ainda não seja suficiente para decretar uma alteração climática permanente, o marco simbólico é significativo, suficiente para que muitos especialistas defendam a ideia da aceleração das mudanças climáticas.
No grupo dos ‘aceleracionistas’ está James Hansen, da Universidade de Columbia (EUA), um dos maiores nomes da ciência climática, responsável por decretar, em 1988, que o aquecimento global já estava em curso. No Brasil, o grupo também conta com nomes de peso, como o de Carlos Nobre, da Universidade de São Paulo (USP), uma das maiores autoridades mundiais no tema.
Os cientistas ainda não chegaram a um consenso sobre o que estaria causando essa aceleração, mas há alguns fatores a serem levados em conta. A despeito de todo o debate das últimas décadas, as emissões de gases do efeito estufa continuam aumentando ano após ano.
Outro fator importante é a redução significativa da emissão de aerossóis. Ou seja, uma medida para restringir a poluição atmosférica estaria contribuindo para o aquecimento; o que Hansen chama de “barganha faustiana”. Isso ocorre porque os aerossóis refletem a luz solar, reduzindo o aquecimento.
É por isso, exemplifica a climatologista Karina Lima, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que erupções vulcânicas que lançam grandes quantidades de cinzas são capazes de reduzir a temperatura média do planeta.
“Além disso, um trabalho recente chegou à alarmante conclusão de que a cobertura de nuvens reflexivas vem diminuindo há duas décadas e essa seria a lacuna que faltava para compreender o desequilíbrio crescente no balanço de energia da Terra”, explicou ela, também divulgadora científica nas redes sociais.
“Agora é necessário descobrir o que está causando essa tendência de constante declínio: se vai continuar e torcer para que não seja um ‘feedback’ causado pelas mudanças climáticas, o que poderia reforçar ainda mais o aquecimento com o passar do tempo.”
Outro estudo publicado em 2024 na revista Geophysical Research Letters aponta outro fator que contribuiu para o aquecimento: a alteração no combustível usado pelos navios que atravessam os oceanos. Isso fez com que nuvens que antes refletiam a luz solar deixaram de existir e essa luz passou a incidir diretamente nos oceanos, aumentando o aquecimento das águas.
Do outro lado do debate, está o grupo dos ‘tradicionalistas’, que também reúne nomes respeitáveis das ciências climáticas, como Michael Mann, da Universidade da Pensilvânia (EUA). O grupo argumenta que, a despeito das temperaturas mais altas, não há evidência de aceleração permanente. O aquecimento estaria seguindo a tendência das últimas décadas, considerando a variabilidade natural do El Niño – responsável pelo aquecimento das águas do Pacífico.
O El Niño, de fato, contribui para elevar a temperatura média do planeta e já era previsto que 2023 seria muito quente por conta do fenômeno. Para os ‘tradicionalistas’, interpretar como aceleração uma variabilidade de curto prazo pode contribuir para fortalecer o discurso dos ‘fatalistas’ (que defendem a ideia de que apenas novas tecnologias poderiam resolver o problema do aquecimento global) e até dos ‘negacionistas’ (que não acreditam no aquecimento global).
“De fato, em 2022 foi previsto um El Niño forte para o ano seguinte, mas a previsão de aumento da temperatura era de 1,3ºC e ele passou de 1,5ºC. Ou seja, um fator mais acelerado do que o previsto. Entre 2021 e o ano passado, o aumento de temperatura foi de 0,4ºC e, mesmo depois que o El Niño acabou, as temperaturas continuaram altas em 2024″, pondera Carlos Nobre.
“A ciência não conseguiu explicar ainda por que subiu tão rápido, mas se continuar assim nos próximos três anos, provavelmente vamos concluir que já atingimos um aumento permanente de 1,5ºC pelo menos 25 anos antes do previsto”, acrescenta.
Em setembro do ano passado, também em entrevista ao Estadão, Nobre manifestou seu espanto sobre o ritmo de aumento de desastres climáticos no momento em que o Brasil enfrentava um avanço inédito de queimadas e via cidades encobertas por fumaça. “Estou apavorado. Ninguém previa isso; é muito rápido.”
Nos piores cenários previstos pelos estudos climáticos, o planeta alcançaria um aumento médio da temperatura global de 1,5º em 2028. Nos melhores cenários, com redução das emissões, chegaríamos e esse aumento em 2050 e, a partir dai, zerando as emissões, fecharíamos o século com um aumento de 1ºC.
No atual cenário de emissões crescentes e aceleração do aquecimento, a previsão é chegarmos ao fim do século com crescimento médio de 3ºC.
“Um aumento de 1,5ºC significa alterações climáticas significativas, com prejuízo na produção de alimento, na saúde da população, e impacto na infraestrutura urbana, mas a adaptação ainda é possível”, explicou Márcio Astrini, do Observatório do Clima.
“Um aumento de 3ºC é catastrófico, não é administrável. Significa extinção em massa de várias espécies, 3 bilhões de pessoas vivendo em vulnerabilidade extrema e fome, o Sul Global em estado de calamidade permanente. O mundo simplesmente não será mais habitável para boa parte das espécies com as quais compartilhamos o planeta.”
Por Estadão