Levantamento inclui apenas dados do sistema público de saúde, o que sugere que o cenário geral pode ser ainda pior; problema tem características distintas entre pessoas jovens e, muitas vezes, é mais grave
Foi em uma tarde de sexta-feira, na piscina da academia, que o coração de Ricardo Bailoni, então com 36 anos, parou. Até aquele momento, não havia sinais claros de que algo estivesse errado, a não ser um cansaço persistente ao longo da semana — sintoma que foi facilmente associado à rotina de trabalho. “Eu estava esperando a professora passar os exercícios e, de repente, apaguei. Quando abri os olhos, estava em uma maca, a caminho da ambulância, e alguém me disse: ‘Você infartou’”, recorda.
Para que o acontecimento não fosse fatal, Bailoni diz que precisou contar com uma “boa dose de sorte”. Isso porque a academia possuía os equipamentos necessários e profissionais treinados para lidar com emergências como aquela — algo que não é considerado tão comum. “Logo que apaguei, me tiraram da piscina, secaram, e utilizaram um desfibrilador. Foi questão de minutos. Precisei de dois choques para voltar”, detalha.
Desde o ocorrido, Bailoni, que é analista de sistemas, é acompanhado pelo cardiologista Fabrício Assami, do Hospital Santa Paula, em São Paulo. O médico explica que o infarto ocorre quando uma parte do coração ‘morre’ devido ao bloqueio de fluxo sanguíneo, geralmente ocasionado pelo acúmulo de placas de gordura nas artérias. No caso do analista, hoje com 47 anos, esse bloqueio aconteceu na ‘artéria descendente anterior’, responsável por bombear a maior parte de sangue ao coração.
Justamente por essa região ter sido comprometida, Bailoni utiliza um desfibrilador implantado ao coração para impedir outros eventos cardiovasculares. O aparelho é responsável por captar irregularidades e aplicar ‘choques’ automaticamente para restabelecer o ritmo cardíaco. Tudo isso, de acordo com o analista, não envolve apenas os impactos físicos, mas também psicológicos.
“Quando você vê a morte de perto, é difícil superar o medo de que aconteça novamente”, compartilha. “Além disso, enfrentei o desconforto de o desfibrilador falhar, aplicando choques desnecessários. Só quem já recebeu esse tipo de descarga sabe como é. Parece um ‘flash’ no rosto, mas vindo de dentro para fora, acompanhado de contração muscular. Às vezes, quando sinto muito frio, isso acaba despertando uma certa ansiedade, pois é uma sensação um pouco parecida”, descreve.
É consenso entre especialistas que os infartos são mais comuns em pessoas acima dos 40 anos. No entanto, também é crescente a percepção de que casos de infarto estão se tornando mais frequentes em indivíduos abaixo dessa faixa etária. Os números confirmam a tendência: um levantamento do Estadão, com base em dados do Ministério da Saúde, mostra que internações de pessoas abaixo de 40 anos em decorrência de infarto passou de 1,7 casos por 100 mil habitantes em 2000 para quase 5 em 2022 — um aumento de 184%.
Incidência de infarto
As internações por infarto entre pessoas de 35 a 39 anos tiveram um aumento de 79,85%, subindo de 9 para 17 casos por 100 mil habitantes, de 2000 a 2022
Observando especificamente as internações de pessoas entre 35 e 39 anos, o aumento foi de 79,8%, passando de 9,3 casos por 100 mil habitantes para 18. Em idades ainda mais atípicas, o aumento também foi observado: em jovens entre 25 e 29 anos, por exemplo, a quantidade mais que triplicou, passando de 1,43 casos por 100 mil habitantes para quase 5 casos por 100 mil.
Vale ressaltar que o levantamento considera apenas as internações no sistema público de saúde. Embora os usuários exclusivamente dependentes do SUS representem uma parcela significativa da população, cerca de 75%, a cardiologista do HCor, Suzana Alves, alerta para a possibilidade de subnotificação.
“Mais do que números, estamos observando esse aumento na prática médica diária. Analisar os dados da rede pública já nos permite observar essa tendência [de alta], mas é impossível ignorar que o número real deve ser ainda maior, já que uma parcela significativa da população utiliza o sistema de saúde suplementar.”
Por que os jovens estão infartando mais?
Segundo especialistas consultados pela reportagem, diversos fatores explicam o cenário atual, com destaque para a predisposição genética e o aumento da obesidade. Para ter ideia, a obesidade afetava 34% dos adultos brasileiros em 2024, segundo estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em 2019, de acordo com a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), esse índice era de aproximadamente 20%, o que representa um aumento de aproximadamente 70% em apenas cinco anos.
“Quanto maior o nível de obesidade ou sobrepeso, maior o risco de desenvolver hipertensão, colesterol elevado e outras condições associadas. Esses fatores de risco cardiovascular, quando combinados, podem danificar as artérias e favorecer a formação de placas de gordura, o que está na base do desenvolvimento do infarto”, descreve o cardiologista Antônio Amorim, da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).
Além disso, os especialistas apontam que estamos vivendo em uma era marcada por “armadilhas” no estilo de vida. Nesse contexto, destacam-se o estresse, a má alimentação e o sedentarismo.
“A pessoa acorda cedo, enfrenta horas no transporte público até o trabalho, não consegue se alimentar adequadamente, acumula estresse ao longo do dia e, sem tempo, recorre a alimentos ultraprocessados, ricos em sódio e gordura. Isso se soma à falta de exercícios, muitas vezes devido às longas horas passadas no trabalho, criando um ciclo que prejudica a saúde do coração”, exemplifica Assami.
No caso de Bailoni, o histórico familiar não era um fator relevante, mas o sobrepeso e os hábitos de vida tiveram grande influência no episódio que ele vivenciou. “Sempre estive acima do peso, não por comer demais, mas pelo meu metabolismo. Meu trabalho também exige que eu passe o dia todo sentado, sem me movimentar”, conta. “Naquele período, tentei a natação, mas estava sedentário fazia tempo, com uma alimentação ruim, optando por alimentos rápidos como congelados, hambúrgueres…”.
Em meio às armadilhas, os especialistas também destacam tendências recentes, como o uso de cigarros eletrônicos e a utilização indiscriminada de hormônios — incluindo o popular “chip da beleza”, que ganhou mais evidência em 2024 devido ao aumento de relatos de efeitos adversos e a forte mobilização de sociedades médicas para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibisse sua comercialização.
“Os ‘vapes’, além de apresentarem níveis de nicotina mais altos do que os cigarros comuns, contêm outras substâncias que elevam o risco de infarto, como aromatizantes”, explica Amorim. “O uso indiscriminado de hormônios segue o mesmo caminho. Os custos para a saúde são muito altos, pois os danos são silenciosos e se manifestam em longo prazo, não apenas no coração, mas também em órgãos como fígado e rins”, complementa.
Covid-19 também tem parcela de culpa?
A cardiologista Suzana Alves, do HCor, analisou a proporção de internações por infarto no SUS em relação ao total de hospitalizações. Em 2010, para cada 100 mil internações, 45,2 eram de pessoas com menos de 40 anos que haviam sofrido infarto. Esse número subiu para 93,7 em 2022. É importante destacar que, até 2019, o aumento das internações por infarto entre os jovens acompanhava o crescimento nas faixas etárias mais avançadas. No entanto, a partir de 2019, o aumento entre os jovens passou a ser o dobro do registrado entre as pessoas com mais de 40 anos.
Para a cardiologista, esse salto mostra que o cenário pode estar fortemente relacionado com a covid-19. Uma possível explicação para essa relação tem a ver com o fato de que muitas pessoas carregam placas de gordura nas artérias que, em situações normais, permanecem estáveis por anos. Porém, comenta Suzana, em um quadro inflamatório, como o causado pelo coronavírus, essas placas podem romper, interrompendo o fluxo sanguíneo e desencadeando um infarto.
“Situações semelhantes ocorrem em quadros agudos de gripe, herpes, pneumonia e outras doenças inflamatórias. A diferença é que a covid-19 infectou um número muito elevado de pessoas em um curto intervalo de tempo, o que pode ter intensificado a tendência de aumento de infartos em idades consideradas ‘atípicas’”.
Por outro lado, Assami destaca a dificuldade em diferenciar o infarto de uma miocardite, inflamação do músculo cardíaco que também pode ser causada pela covid. “Isso pode ter influenciado o aumento nos registros desde 2019, já que a falta de acesso à ressonância magnética, uma realidade comum no SUS, faz com que os médicos se baseiem em exames de sangue, que indicam lesão cardíaca, mas não identificam a causa”.
Infarto em jovens é pior?
O infarto em jovens apresenta características distintas e, muitas vezes, é mais grave, segundo o cardiologista Marcos Knobel, do Hospital Israelita Albert Einstein.
Com o avanço da idade, é comum que os vasos sanguíneos sofram obstruções progressivas por placas de gordura. Por incrível que pareça, isso é capaz de proporcionar uma certa proteção, uma vez que, com o tempo, o corpo desenvolve uma rede de vasos sanguíneos alternativos, chamada ‘circulação colateral’. “Esses novos caminhos funcionam como um ‘plano B’. Em caso de obstrução, eles garantem que o sangue continue chegando ao coração — algo que os jovens não têm tempo de desenvolver”, explica o médico.
Outro complicador é a variabilidade dos sintomas, muitas vezes subestimados pelos pacientes. “A dor no peito, que geralmente irradia para o braço esquerdo, é o sintoma mais conhecido do infarto, mas nem sempre está presente. Muitos podem apresentar suor excessivo, enjoo, palidez ou até dor no estômago”, explica Assami. “O problema é que os jovens, por se considerarem ‘sempre ótimos’, tendem a ignorar esses sinais”.
Essa percepção de que infartos são raros em pessoas abaixo dos 40 anos pode refletir até na conduta dos profissionais de saúde. “Às vezes o jovem chega ao hospital com sintomas muito típicos de ataque cardíaco, mas acaba retornando para a casa com diagnóstico de ansiedade, distúrbios osteomusculares, porque até os médicos tendem a não considerar a possibilidade de um infarto precoce”, complementa Suzana.
Na opinião da médica, as evidências indicam a necessidade de uma mudança na abordagem dos serviços de emergência. “Hoje, profissionais de saúde estão sempre atentos a pacientes com mais de 40 anos. Abaixo disso, a abordagem é diferente. Isso precisa mudar”, afirma. “Estamos falando de um problema que, quando não culmina em morte, pode resultar em sequelas, afetando a qualidade de vida, o psicológico, a capacidade de trabalho… É algo muito sério e que precisa ser discutido”, conclui.
Por Estadão