Alta nos últimos oito anos, revelada por dados do Ministério da Saúde, preocupa especialistas, que veem avanço das doenças crônicas nessa faixa etária
Por Alessandro Fernandes, Gabriel Damasceno, Lívia Patrícia e Naiane Pinheiro
Os atendimentos ambulatoriais de crianças e adolescentes no Brasil subiram cerca de 430% por obesidade e 225% por diabetes tipo 2 em oito anos, como mostram dados do Ministério da Saúde. O aumento da incidência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) na faixa etária até 19 anos preocupa profissionais da saúde e pesquisadores. De acordo com eles, o estilo de vida atual agrava o cenário, por causa de menos horas de sono, sedentarismo, consumo de alimentos ultraprocessados e maior tempo de telas entre as novas gerações.
“Se isso ocorre tão cedo, vai fazer essa criança com obesidade e diabetes tipo 2 ter mais tempo para desenvolver as complicações crônicas, que são neuropatia, oftalmopatia, doença cardiovascular e nefropatia”, afirma o endocrinologista Bruno Geloneze, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Um dos principais pesquisadores sobre obesidade no Brasil, vinculado ao Laboratório de Investigação em Metabolismo e Diabetes (Limed), Geloneze ainda aponta os efeitos para a saúde pública em geral. “Vai existir maior necessidade de consultas, mais exames laboratoriais e, eventualmente, mais medicamentos para hipertensão, para uma população que outrora não vivenciava isso.”
Obesidade e diabetes estão em uma curva crescente em pacientes até 19 anos, de acordo com dados do Sistema de Informações Ambulatoriais, do Datasus, tabulados pela Coordenação Geral de Gestão de Sistemas de Informação (CGSI) do Ministério da Saúde. De 2015 para 2023, o número de atendimentos ambulatoriais – consultas e procedimentos médicos que não exigem internação – de crianças e adolescentes subiu em torno de 430% por obesidade (de 2.518 para 13.285) e 225% por diabetes tipo 2 (de 351 para 1.143). Entre os problemas cardíacos, os atendimentos ambulatoriais por infarto nessa faixa etária subiram 115% no mesmo período, de 1.943 para 4.138.
No mesmo período, outra base de dados, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, mostra que a alta em atendimentos hospitalares e ambulatoriais entre pacientes de até 17 anos no Estado ficou em torno de 2.475% por obesidade (de 126 para 3.243) e 130% por diabetes tipo 2 (de 73 para 169). Ainda de 2015 a 2023, os casos de ansiedade e depressão nessa faixa etária subiram 465% e 150%, respectivamente.
“Se isso ocorre tão cedo, vai fazer essa criança com obesidade e diabetes tipo 2 ter mais tempo para desenvolver as complicações crônicas, que são neuropatia, oftalmopatia, doença cardiovascular e nefropatia”
Bruno Geloneze
Endocrinologista e professor da Unicamp
Especialistas consultados pelo Estadão ainda argumentam que pode haver subnotificação e que, embora os números pareçam pequenos, a tendência de alta é preocupante, já que essas são doenças tipicamente de adultos ou idosos. “Num passado não muito remoto, nos anos 1970 e 1980, a obesidade em crianças e adolescentes era praticamente por casos de mutações genéticas. Agora, contamos 10, 20, 30 vezes a proporção de pessoas”, conta Geloneze. “Vai haver, como consequência, o surgimento desse conjunto de doenças crônicas, em especial o diabetes tipo 2.” Segundo o médico, nas próximas décadas, crianças e adolescentes hoje diagnosticados com DCNTs terão complicações antes observadas em pessoas com 60 ou 70 anos.
Mais de 30% das crianças e adolescentes brasileiros estão acima do peso, com base em dados do Sistema Único de Saúde (SUS). “As crianças que vierem a se transformar em obesos mórbidos terão um custo muito elevado porque ou caminham para a cirurgia bariátrica ou fazem tratamentos específicos bastante caros”, explica o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, um dos idealizadores do SUS. A obesidade e o sobrepeso também podem criar problemas nas articulações, como artrose, em razão da sobrecarga na estrutura esquelética.
2.475% de aumento
nos atendimentos hospitalares e ambulatoriais entre pacientes de até 17 anos no Estado de São Paulo
“Outras doenças vão se desenvolver, e não só hipertensão e diabetes. Sabemos hoje que a obesidade está ligada a um problema inflamatório crônico que pode levar também a doenças metabólicas graves e a cânceres”, afirma Vecina, que também fundou e presidiu a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Então, o impacto vai ser muito maior.”
As DCNTs englobam ainda problemas respiratórios, câncer e questões de saúde mental. Geralmente, são definidas por situações que perduram por mais de 12 meses e são suficientemente graves para criar algum grau de comprometimento para os pacientes.
EPIDEMIA DE OBESIDADE
Caso nada seja feito para mudar o cenário atual, metade das crianças brasileiras terá o Índice de Massa Corporal (IMC) elevado em 2035, segundo projeção do Atlas Mundial da Obesidade 2024. “Essa condição traz consequências psicológicas, cardiovasculares, endócrinas e sociais, além de ser um fator de risco para doenças crônicas não transmissíveis”, explica Alanna Gomes, professora de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vinculada ao Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da instituição.
“Também me preocupa o fato de que adolescentes com obesidade têm uma baixa probabilidade de reverter esse quadro na vida adulta, tornando a prevenção ainda mais essencial. Um dado do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) do Ministério da Saúde, de 2022, revelou que entre 4,4 milhões de adolescentes acompanhados, 1,4 milhão foram diagnosticados com sobrepeso, obesidade ou obesidade grave”, diz Alanna.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Atlas Mundial da Obesidade 2024 apontam que países emergentes, caso do Brasil, serão os mais afetados a curto prazo. De acordo com dados do atlas, a projeção é de que até 2035 mais de 750 milhões de crianças e adolescentes (com idade entre 5 e 19 anos) deverão viver com sobrepeso e obesidade no mundo. Para o mesmo ano, estima-se que 68 milhões de crianças vão sofrer de hipertensão, cerca de 27 milhões estarão vivendo com hiperglicemia (excesso de açúcar no sangue) e 76 milhões terão baixos níveis de colesterol HDL (o chamado “colesterol bom”) – tudo decorrente de um índice de massa corporal (IMC) elevado.
“O diabetes tipo 2, uma condição que normalmente não víamos em crianças e adolescentes, está sendo encontrado com mais frequência devido ao aumento da prevalência de sobrepeso e obesidade em idades cada vez mais precoces”, destaca Virgínia Oliveira, professora do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (DSC/UFC).
Segundo Fabiana Soares, pediatra e médica da família, alguns pacientes em quadro agudo apresentam os chamados 3Ps: polidipsia (sede demasiada); polifagia (fome excessiva); e poliúria (vontade frequente de urinar). “Chama atenção porque a pessoa come mais e perde peso, de uma hora para outra”, diz. “Os 3Ps e a perda de peso repentina podem ocorrer em qualquer faixa etária, mas são sinais de alerta em crianças e adolescentes, que muitas vezes são diagnosticados em um estágio mais avançado.”
Fabiana explica que, durante a infância e adolescência, pode-se conviver por anos com doenças de forma silenciosa. “Se uma criança ganha peso de forma constante ou há sintomas persistentes de cansaço extremo ou sede excessiva, isso pode indicar condições crônicas. Então avaliações regulares com o pediatra são muito importantes para que a gente possa diferenciar esses quadros”, explica Fabiana.
Além de peso, estatura, índice de massa corporal (IMC), hábitos alimentares, uso de telas e frequência de atividade física, o profissional pode definir o que mais é necessário para a avaliação. “Recomendo exames regulares, como glicemia de jejum, perfil lipídico, colesterol total e frações e triglicerídeos, e a aferição da pressão arterial, que deve ser feita em toda consulta em crianças acima de 4 anos”, diz a médica de família.
ATENÇÃO AOS PRIMEIROS SINAIS
De acordo com a pediatra, a hipertensão e o diabetes estão entre as doenças mais difíceis de diagnosticar precocemente. “Essas condições se desenvolvem de forma silenciosa e, muitas vezes, só são identificadas quando surgem complicações, como problemas renais graves, que poderiam ter sido evitados com um acompanhamento adequado”, alerta Fabiana. “Os rins são órgãos que sofrem muito em pacientes diabéticos e hipertensos também.”
Foi a mãe de Fernanda Velasque Menna, hoje com 19 anos, que desconfiou de algum problema de saúde na filha, pois a menina, na época com 13 anos, levantava muito para urinar durante a noite. “A glicose dela deu mais de 300. Ela fez os exames e constataram que, realmente, estava com diabetes”, lembra Eliane Alves Menna.
Fernanda era sedentária, consumia muita massa e alimento industrializado e passava grande parte do dia em frente a telas. A adolescente chegou a ficar acima do peso e a ter gordura no fígado. Após o diagnóstico, precisou cultivar hábitos diferentes. “No começo, eles não querem aceitar que estão com o problema, acham que podem continuar na mesma vida. Mas, aos poucos, ela foi mudando”, conta a mãe.
Não só Fernanda se readequou, mas toda a casa. “É bem complicado no início, mas a gente vai se organizando e vai dando certo”, diz Eliane. Hoje a estudante de Direito faz acompanhamento no Instituto da Criança com Diabetes (ICD), a doença e o peso estão sob controle.
“No começo, eles não querem aceitar que estão com o problema, acham que podem continuar na mesma vida. Mas, aos poucos, ela foi mudando”
Eliane Alves Menna
Mãe de Fernanda, com 19 anos, há seis convivendo com o diabetes tipo 2
Para funcionar de uma forma ampla no País, a prevenção e o tratamento de DCNTs passam necessariamente pelo incentivo à prática de atividades físicas, dizem os médicos ouvidos na reportagem. “Existem vários estudos sobre regiões com áreas verdes e incidência de obesidade e, obviamente, a área verde é fundamental para que a pessoa possa ter alguma atividade física em momentos de lazer”, diz Katia Bloch, coordenadora do Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (Erica), realizado com jovens de 12 a 17 anos, em cidades com mais de 100 mil habitantes. A pesquisa foi a campo entre 2013 e 2014 e contou com a participação de 73.399 estudantes de escolas públicas e privadas de todo o Brasil.
Doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia (UFB) e pela London School of Hygiene and Tropical Medicine, Katia enfatiza que isso exige o investimento de governos em segurança pública, criação de parques e praças, ciclofaixas e feiras comunitárias com frutas e legumes a preços acessíveis.
A sintonia entre pais e professores também favorece o acompanhamento da saúde dos alunos. “Informações como piora no desempenho escolar e o relacionamento da criança com amigos devem ser recebidas e investigadas em parceria com a própria escola”, diz Matheus Alves Álvares, coordenador de Endocrinologia Pediátrica do Sabará Hospital Infantil. Ele recomenda estar atento a mudanças físicas ou comportamentais, e também incluir crianças e adolescentes nos processos de decisão, caso da rotina alimentar. “Acho importante participarem da escolha e da preparação do alimento, tornando a relação o mais lúdica possível.”
IMPACTOS DOS ULTRAPROCESSADOS
Recentemente, um estudo da Fiocruz e do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP) relacionou o consumo de alimentos ultraprocessados com os valores de tratamentos no SUS, aposentadorias precoces e licenças médicas em 2019. De acordo com a pesquisa, realizada a pedido da ACT Promoção da Saúde, isso custou R$ 10,4 bilhões aos cofres públicos, sendo R$ 1,2 bilhão de despesas diretas no SUS e R$ 9,2 bilhões de perdas indiretas pela produtividade interrompida.
“Embora o Sul e o Sudeste tenham maior prevalência de obesidade, regiões menos afetadas já apresentam um cenário preocupante”, afirma Eduardo Nilson, responsável pelo levantamento Estimação dos Custos Diretos e Indiretos da Obesidade, Diabetes e Hipertensão Atribuíveis ao Consumo de Produtos Alimentícios Ultraprocessados. “Os mesmos grupos que enfrentam fome e desnutrição também tendem a serem os mais propensos à obesidade”, alerta o pesquisador.
R$ 10,4 bilhões em custos
decorrentes de tratamentos no SUS, licenças e aposentadorias precoces devido ao consumo de ultraprocessados, de acordo com pesquisa da Fiocruz com Nupens/USP
Alimentos que passam por intensa industrialização para melhorar sabor, aparência e textura, os ultraprocessados em geral contêm altos índices de calorias, gordura, açúcar, sal e aditivos químicos. Esses produtos – entre eles, salgadinhos, refrigerantes e refeições prontas ou instantâneas – são amplamente consumidos devido à sua praticidade.
“Do ponto de vista da ciência, não há mais nenhuma dúvida na relação entre o consumo de ultraprocessados e o desenvolvimento de doenças crônicas”, diz a socióloga Paula Johns, diretora executiva e co-fundadora da ACT Promoção da Saúde. “Com relação às crianças, a nossa grande preocupação é que hoje a nossa população adulta consome em média em torno de 20% de calorias dos ultraprocessados e no Enani (Estudo Nacional de Nutrição) foi identificado que as crianças brasileiras consomem cerca de 30% de ultraprocessados.”
Ela, o sanitarista Vecina e o pesquisador Nilson estão entre os especialistas que defendem o aumento de impostos para esse tipo de alimento. “A reforma tributária é uma entre um conjunto de políticas para frear o consumo de ultraprocessados”, afirma Paula. Outro aspecto é a oferta de produtos a preços reduzidos. “Sem acesso a alimentos saudáveis a preços acessíveis, as escolhas das famílias são limitadas”, completa Nilson.
Para a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), não há provas da causalidade direta entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o desenvolvimento de DCNTs. “As doenças crônicas são sabidamente multifatoriais. No que diz respeito apenas à alimentação, é muito difícil comprovar uma associação desse tipo quando se aplica um conceito que classifica da mesma forma mais de 5.700 alimentos completamente diferentes entre si”, informa, por nota, o presidente executivo da entidade, João Dornellas.
A entidade informou que inovações no perfil nutricional dos alimentos são prioridade para a indústria. “Faz mais de 10 anos que a Abia assinou acordos com o Ministério da Saúde para a redução voluntária de gordura trans, sódio e açúcares de diversas categorias de alimentos industrializados”, diz o texto. Segundo a Abia, foram retiradas 144 mil toneladas de açúcares de 23 categorias de alimentos e bebidas e mais de 30,4 mil toneladas de sódio de 35 categorias de alimentos. / COLABORARAM BIANCA CARNEIRO, FERNANDA ORNELLAS, FRANCISCO CAMOLEZI, GABRIELA ANDRADE, JÚLIA PASCHOALINO E YURI EUZÉBIO
Diagnóstico em adolescentes pode levar mais tempo
Pacientes dessa faixa etária vão menos a consultas médicas, e estudo mostra que 81% do jovens brasileiros têm ao menos dois fatores comportamentais para doenças crônicas
Por Alessandro Fernandes, Bianca Carneiro e Júlia Paschoalino
Enquanto crianças têm uma rotina mais estruturada, com visitas regulares para vacinas e acompanhamento do desenvolvimento, adolescentes muitas vezes passam anos sem consultar um médico, alertam especialistas ouvidos na reportagem. Em contrapartida, um estudo publicado em 2024 alertou que 81% dos brasileiros nessa faixa etária acumulam pelo menos dois fatores de risco comportamentais para doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) e que apenas 3,9% não apresentam nenhum deles.
Realizada pela Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pela Faculdade de Medicina da mesma instituição e pela Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a pesquisa mostrou que o fator de risco comportamental mais prevalente entre os adolescentes é a falta de atividade física (71,5%). Na sequência, vieram: ingestão irregular de frutas e vegetais (58,4%); sedentarismo (54,1%); consumo regular de guloseimas (32,9%); consumo de bebidas alcoólicas (28,1%); consumo regular de refrigerantes (17,2%); e tabagismo (6,8%).
71,5% dos jovens brasileiros
não praticam atividades físicas regularmente, segundo pesquisa das Federais de Minas e São Paulo
“Verificamos esses fatores de forma isolada, mas os estudos já mostram que eles geralmente não estão presentes dessa maneira no indivíduo. Eles tendem a se acumular, devido ao que chamamos de fator sinérgico”, explica Alanna Gomes, professora de Enfermagem da Federal mineira, vinculada ao Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da universidade. A pesquisa, publicada na revista internacional BMC Pediatrics, utilizou dados do principal inquérito nacional realizado com adolescentes, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense), com a participação de 121.580 brasileiros de 13 a 17 anos.
MAIOR ENGAJAMENTO
Com menos idas ao médico do que as crianças, adolescentes podem levar mais tempo para serem diagnosticados. Com isso, o papel da família na prevenção e no tratamento de doenças crônicas é fundamental nessa fase, especialmente na ajuda para mudanças na rotina.
“Eles têm mais autonomia, mas também enfrentam barreiras sociais e hábitos já consolidados. Muitos não leem rótulos, consomem ultraprocessados em excesso e têm dificuldade em reduzir o tempo de tela. Melhorar a qualidade do sono também é um grande desafio”, afirma Maria Cristina de Andrade, chefe do setor de Nefropediatria do Hospital São Paulo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
No entanto, se estão engajados, a médica enfatiza que os adolescentes mudam o estilo de vida significativamente. “Quando eles se comprometem, conseguem reduzir alimentos ultraprocessados, praticar exercícios e adotar hábitos mais saudáveis. Mas, muitas vezes, falta apoio familiar ou comunitário, o que dificulta o processo.”
Solução depende de Atenção Primária à Saúde forte
Como doenças crônicas persistem ao longo da vida, especialistas afirmam que são necessárias equipes multidisciplinares e protocolos para ajudar crianças e adolescentes
Por Alessandro Fernandes e Naiane Pinheiro
Pais, escolas e médicos precisam trabalhar juntos para promover mudanças no dia a dia que protejam crianças e adolescentes de riscos evitáveis, repetem os especialistas consultados. Eles afirmam que o combate e o tratamento de DCNTs entre crianças e adolescentes no Brasil depende de uma estrutura forte de Atenção Primária à Saúde (APS).
“Não tenho dúvida de que as doenças crônicas não transmissíveis exigem uma equipe na atenção primária à saúde com capacidade de entender a gênese, como essas doenças aparecem e se instalam. Não são doenças das quais nós vamos ter alta, não têm cura. São doenças que nos acompanham a vida toda”, afirma Gonzalo Vecina Neto, um dos idealizadores do SUS.
Para o sanitarista, é necessário capacitar os profissionais da saúde sobre as DCNTs, principalmente com protocolos adequados para ajudar as gerações mais novas. “O generalista não é um pediatra. Então, ele vai ter de aprender coisas específicas sobre essas doenças e sobre o estado de fisiologia das crianças”, diz Vecina. Ele defende que é essencial a participação de outros profissionais, como enfermeiras e nutricionistas, para lidar com os aspectos relacionados à alimentação e à atividade física nessa faixa etária.
“O generalista não é um pediatra. Então, ele vai ter de aprender coisas específicas sobre essas doenças e sobre o estado de fisiologia das crianças”
Gonzalo Vecina Neto
Médico sanitarista, um dos idealizadores do SUS e ex-presidente da Anvisa
Segundo Fabiano Guimarães, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), a medicina de família tem um papel crucial na prevenção e no tratamento das novas gerações por conhecer de perto a rotina do paciente. “A gente tem a chance de acompanhar aquela criança ao longo do tempo, perceber o ganho de peso, se ela adquiriu hábitos que não são bons”, exemplifica. “Se é aquela criança que vai da escola para a tela, da tela para dormir e de novo para a escola na manhã seguinte, então os exames são importantes para fechar o diagnóstico.”
De acordo com Guimarães, o número de especialistas na área é insuficiente para cobrir todo o território nacional. “A gente precisa formar mais especialistas em medicina de família”, afirma. De acordo com os dados da Demografia Médica no Brasil, em 2023, o País tinha 10 mil médicos especialistas em Medicina de Família e Comunidade. “Para a ação exclusiva no SUS, a gente precisaria hoje subir para 50 mil. Se pensarmos na ocupação de outros espaços, esse número pode ser ainda maior, algo em torno de 60 mil médicos de família e comunidade”, completa o médico.
De acordo com uma pesquisa do (Ieps), a principal causa que impede o cuidado eficiente das DCNTs é a lacuna no cadastro de usuários. O levantamento nacional de saúde de 2019 indicava que 40% dos domicílios não estavam cadastrados em programas de atenção primária, criando os chamados “vazios sanitários”. Além de preparar o sistema de saúde para atender esses pacientes, Arthur Aguillar, diretor de Políticas Públicas do Ieps, destaca a necessidade de repensar como as cidades são organizadas, a cultura alimentar, as condições de acesso a alimentos saudáveis e que escolhas estão disponíveis para os indivíduos.
AÇÃO NAS ESCOLASComo crianças e adolescentes passam boa parte do dia no colégio, uma ação conjunta entre as áreas de Saúde e Educação, segundo os especialistas consultados, surte mais efeito para incentivar uma alimentação equilibrada e a prática de exercícios físicos.
Visita de equipe médica
• “O médico generalista e a enfermeira têm de visitar as escolas. É o lugar mais correto para essa intervenção, no sentido colaborativo”, afirma o sanitarista Vecina. A estratégia é especialmente eficaz para os adolescentes, que nem sempre vão a consultas.
Alimentação balanceada
• Aguillar, diretor de Políticas Públicas do Ieps, reforça que é necessária uma ação mais efetiva e de âmbito nacional em relação à alimentação escolar. “Há esforços no Brasil para enfrentar esse problema, como iniciativas que proíbem a venda de ultraprocessados em escolas públicas e privadas, a exemplo do que ocorreu no Rio de Janeiro. No entanto, a resposta das políticas públicas ainda está aquém da magnitude do desafio”, afirma.
Por meio de nota, o Ministério da Saúde informou que tem adotado medidas para prevenir e tratar doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) em crianças e adolescentes. “Essas ações incluem o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS), com programas como a Estratégia Saúde da Família e o apoio de agentes comunitários de saúde, que permitem o monitoramento, manejo e prevenção dessas condições”, disse o texto.
Além disso, o órgão acrescentou que executa ações para a promoção da amamentação exclusiva até os seis meses e o incentivo à alimentação saudável com alimentos in natura e minimamente processados, conforme orientações do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras.
Também afirmou que, em parceria com o Ministério da Educação, implementa o Programa Saúde na Escola (PSE), com o objetivo de prevenir fatores de risco para doenças cardiovasculares, como sobrepeso, obesidade, uso de substâncias e sedentarismo. “Por meio desse programa, ações de promoção de hábitos saudáveis e a educação para a saúde são integradas ao currículo escolar, contribuindo para a formação integral dos jovens e a prevenção de doenças futuras”, informou na nota.
Por fim, a pasta disse que está comprometida em planejar e implementar políticas públicas intersetoriais para conter o aumento dessas doenças entre crianças e adolescentes. “Ações como a Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil, a Rede de Atenção à Saúde, e campanhas de comunicação sobre alimentação saudável e atividade física buscam promover hábitos saudáveis desde a infância e adolescência, reduzindo o risco de doenças crônicas na população.”
O governo de São Paulo informou que tenta fortalecer a atenção básica dos municípios, em busca de melhorar os indicadores relacionados a doenças crônicas e outras enfermidades no Estado. “Quando falamos de políticas públicas e prevenção, é essencial pensar primeiro no organizador da assistência no território. Nesse caso, é a atenção básica, que está sob gestão municipal”, explicou Roberta Ricardes, profissional da área técnica de Saúde da Criança da secretaria estadual.
Para isso, a atual gestão aposta no programa Incentivo à Gestão Municipal (IGM), que repassa verbas para as cidades melhorarem os indicadores de saúde. “Já foram repassados mais de R$ 700 milhões dentro dos 645 municípios para a qualificação da saúde pública. Quais são esses indicadores? Cobertura vacinal, prevenção da mortalidade infantil, controle do câncer de colo do útero, pré-natal, controle de hipertensão, diabetes e até arboviroses”, disse Roberta. / COLABOROU GABRIEL DAMASCENO
2º CURSO ESTADÃO DE JORNALISMO DE SAÚDE. REPÓRTERES: ALESSANDRO FERNANDES, BIANCA CARNEIRO, CRISTIANE CAMPARI, FERNANDA ORNELLAS, FRANCISCO CAMOLEZI, GABRIEL DAMASCENO, GABRIELA ANDRADE, GIOVANA KEBIAN, HYAGO BANDEIRA, JÚLIA PASCHOALINO, KETHILYN MIEZA, LARISSA COSTA, LARISSA CRIPPA, LEONARDO SIQUEIRA, LÍVIA PATRÍCIA, NAIANE PINHEIRO, NATHALIA SOUZA, THAIS MATOS E YURI EUZEBIO EDIÇÃO: CARLA MIRANDA E NATHALIA MOLINA; EQUIPE DO CURSO: ABEL SERAFIM E VICTOR HUGO MENDES; EDITORA DE INFOGRAFIA: REGINA ELISABETH SILVA; EDITORES-ASSISTENTES DE INFOGRAFIA: ADRIANO ARAUJO E WILLIAM MARIOTTO; DESIGN MULTIMÍDIA: LUCAS ALMEIDA.
Por Estadão