A ordem internacional pós- 2.ª Guerra Mundial está em jogo
Os eleitores americanos tendem a ser bastante paroquiais em sua abordagem às eleições, concentrando-se em questões domésticas acima de tudo. Não tenho certeza se muitos deles estão totalmente cientes do que está em jogo nesta eleição presidencial. A escolha entre a vice-presidente Kamala Harris e o ex-presidente Donald Trump é um referendo não apenas do futuro dos Estados Unidos, mas também do futuro do mundo inteiro.
Os Estados Unidos continuam sendo de longe o país mais poderoso do mundo: gastam mais em defesa do que os 10 países seguintes juntos, e sua produção econômica responde por cerca de um quarto do total global. O que os EUA fazem importa. Muito.
Na década de 1930, os EUA seguiram uma política de protecionismo e isolacionismo. Não por coincidência, a 2.ª Guerra Mundial logo se seguiu. Os vizinhos da Alemanha e do Japão eram fracos demais para dissuadir e derrotar essas ditaduras fascistas por conta própria. Eles precisavam desesperadamente de ajuda americana e não a receberam até que fosse quase tarde demais.
Depois de 1945 nos EUA, a maior de todas as gerações procurou retificar esse erro construindo uma nova ordem mundial baseada em pactos de livre comércio e alianças de segurança. Essa abordagem foi incrivelmente bem-sucedida: democracia e prosperidade se espalharam pelo mundo. Grandes conflitos de poder foram evitados. Os EUA foram os maiores beneficiários entre os principais países do sistema internacional que criaram junto com seus aliados: o produto interno bruto per capita dos EUA em 2023 foi de US$ 73.600, em comparação com apenas US$ 39.800 para a Rússia e US$ 22.100 para a China.
Agora, essas conquistas históricas estão ameaçadas pela possibilidade de Trump retornar ao cargo e implementar políticas do tipo “Estados Unidos em primeiro lugar” que lembram a década de 1930. Somente com uma vitória de Harris os EUA provavelmente continuarão a perseguir as políticas que sustentaram sua prosperidade e segurança desde 1945.
É claro que é impossível prever o curso exato de um segundo governo Trump, porque Trump é muito errático e ilógico — e facilmente influenciado por qualquer um que alimente seu ego insaciável. Conforme envelhece, o magnata imobiliário de 78 anos parece ainda mais desconectado da realidade. Isso, por si só, é uma grande preocupação, já que o mundo depende da liderança firme dos EUA, que pode ser substituída pelo caos e confusão em uma Casa Branca de Trump. Mas, em certas questões, Trump tem sido muito claro quanto às suas intenções.
Ele pretende, por exemplo, aumentar as tarifas drasticamente — em 20%, pelo menos, e provavelmente muito mais — para os níveis mais altos desde a década de 1930. “Para mim, a palavra mais bonita do dicionário é ‘tarifa’. É a minha favorita”, disse Trump na semana passada. Um ignorante econômico irredutível, ele continua insistindo que os consumidores dos EUA não pagariam por essas tarifas — mas pagariam. O custo das tarifas aumentaria ainda mais quando outras nações impusessem tarifas retaliatórias às exportações dos EUA. “Enfrentaríamos taxas de juros mais altas, crescimento mais lento, inflação mais alta”, disse um analista financeiro ao Post. Também enfrentaríamos um mundo em que os EUA estariam presos em guerras comerciais com seus aliados mais próximos.
Essas divisões seriam exacerbadas se Trump seguisse as políticas de segurança que ele sugeriu. Trump disse que avisou aos aliados que encorajaria os russos a fazerem “o que diabos eles quisessem” aos aliados da Otan que não pagassem o suficiente pela defesa. “As chances de ele se retirar da Otan são muito altas”, alertou John Bolton, ex-conselheiro de segurança nacional de Trump.
O novo livro de Bob Woodward relata que, desde que deixou o cargo, Trump teve até sete conversas com Vladimir Putin, enviando ao ditador russo equipamentos de teste de coronavírus quando estes eram escassos. O Kremlin já confirmou o envio dos testes de coronavírus, e Trump não negou exatamente suas ligações com Putin quando perguntado a respeito delas. A natureza exata do relacionamento de Trump com Putin permanece misteriosa, apesar de anos de investigações, mas é evidente que o ex-presidente — e possivelmente futuro presidente — dos EUA tem uma afinidade nauseante pelo déspota do Kremlin.
Foi perturbador ouvir Trump se gabar no mês passado, enquanto se encontrava com o presidente ucraniano Volodmir Zelenski, de que ele tem um “relacionamento muito bom” com Putin. Franklin D. Roosevelt teria se gabado de seu relacionamento com Adolf Hitler enquanto se encontrava com Winston Churchill? No debate solitário de Trump com Harris, ele se recusou a dizer que deseja que a Ucrânia ganhe a guerra. Ele tem sido implacavelmente crítico da ajuda dos EUA à Ucrânia e, na semana passada, culpou Zelenski pela guerra de agressão de Putin. Trump prometeu acabar com a guerra em um dia, o que só poderia ser feito forçando a Ucrânia a aceitar as demandas russas.
Para o eleitor que deseja que a Ucrânia continue sendo um estado independente, a escolha em 5 de novembro não poderia ser mais clara
Harris, por outro lado, prometeu em seu discurso na convenção democrata “permanecer firme ao lado da Ucrânia e dos nossos aliados da Otan”, denunciou os “crimes contra a humanidade” russos e, no debate presidencial, disse que, se Trump ainda fosse presidente, “Putin estaria sentado em Kiev agora”. Para o eleitor que deseja que a Ucrânia continue sendo um estado independente, a escolha em 5 de novembro não poderia ser mais clara.
Enquanto Trump colocaria em risco a ordem mundial pós-1945 fomentada pelos Estados Unidos, Harris a defenderia. Apesar das inevitáveis objeções sexistas quanto às suas qualificações ou capacidade de liderança, ela está mais bem preparada para ser comandante-em-chefe do que muitos dos homens que ocuparam essa posição. Como vice-presidente, ela conheceu mais de 150 líderes mundiais, embarcou em 17 viagens ao exterior e contribuiu regularmente para os debates na Sala de Situação a respeito de questões de guerra e paz.
É difícil apontar as contribuições exatas de Harris para a formação da política externa do presidente Joe Biden, mas também foi difícil apontar para as contribuições do vice-presidente George H.W. Bush para a política externa de Ronald Reagan. Essa é a natureza da vice-presidência: seu papel é aconselhar o presidente nos bastidores e apoiar lealmente suas políticas em público.
Quando Harris revelou suas próprias opiniões, no entanto, elas foram tranquilizadoramente convencionais. “Acredito que é do interesse fundamental do povo americano que os Estados Unidos cumpram nosso papel de longa data de liderança global”, disse ela na Conferência de Segurança de Munique em fevereiro, acrescentando: “Essa abordagem fortalece os EUA e mantém os americanos seguros”.
Ela está certa, e é por isso que mais de 700 ex-oficiais de segurança nacional — e mais de 100 líderes republicanos de segurança nacional — endossaram Harris. Em contraste, apenas cerca de metade do próprio Gabinete de Trump o apoiou, e aqueles que se opõem a ele incluem seu vice-presidente, o ultraconservador Mike Pence. O general aposentado Mark A. Milley, presidente do Estado-Maior Conjunto de Trump, o chamou de “fascista até a medula”. Mark T. Esper, secretário de defesa de Trump, o chamou de “uma ameaça à democracia”. O general aposentado John F. Kelly, chefe de gabinete de Trump na Casa Branca, o descreveu como “uma pessoa que admira autocratas e ditadores assassinos”.
Devolver Trump ao Salão Oval — onde desta vez ele dificilmente seria restringido por “adultos” como Milley, Esper e Kelly — seria uma receita para o declínio americano e a crescente instabilidade global. Trump é um inimigo da democracia em casa e um amigo de ditadores no exterior. Ele poderia inaugurar um mundo — visto pela última vez na década de 1930 — em que as nações democráticas estão fatalmente divididas e os ditadores acham que podem cometer agressões impunemente. Então, que os americanos votem como se o destino do mundo dependesse da escolha deles. Porque é bem possível que isso seja verdade. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Opinião por Max Boot, Estadão