BC calcula que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família deram R$ 3 bi via Pix para as ‘bets’ em agosto. Trata-se de uma tragédia social que governo e sociedade não podem ignorar
O Banco Central (BC) divulgou uma nota técnica na terça-feira passada que traz um dado ainda mais chocante sobre a presença cada vez mais perniciosa das chamadas “bets” na vida dos brasileiros. De acordo com a autoridade monetária, em agosto, 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família – cerca de 20% do total de atendidos pelo programa social – deram R$ 3 bilhões para as plataformas de apostas online apenas por meio de transferências via Pix. Como se vê, trata-se de um eficientíssimo programa de transferência de renda, só que às avessas, ou seja, de gente muito pobre para gente muito rica.
Governo e sociedade estão diante de uma tragédia social de múltiplos desdobramentos para os cidadãos e para o País como um todo. Os danos causados pela jogatina à saúde mental e financeira dos apostadores e suas famílias estão sobejamente demonstrados. E aqui se está tratando do segmento mais vulnerável dos brasileiros, daqueles que dependem diretamente da ação do Estado para ter até o que comer. Parte da renda que deveria, idealmente, ser destinada à compra de meios de subsistência tem sido perdida em decorrência do estímulo a uma esperança vã de ganhos financeiros que, na esmagadora maioria dos casos, jamais se concretizam.
São os mais pobres, por óbvio, os mais suscetíveis a sucumbir à tentação do dinheiro “fácil e rápido”. Para agravar essa tendência, as empresas de apostas online investem rios de dinheiro em campanhas publicitárias das quais, hoje, é praticamente impossível escapar. Todos os dias, os cidadãos são bombardeados por propagandas de “bets” da hora em que acordam até a hora em que vão dormir – e propagandas não raro protagonizadas por personalidades bastante populares que decerto não apostam e, ademais, não perdem o sono preocupadas com a natureza nociva do “produto” que estão vendendo ao público.
Mesmo correndo o risco de ver a análise ser interpretada como uma extrapolação de seu escopo original de trabalho, o BC, em boa hora, destacou na nota técnica que “é razoável supor que o apelo comercial do enriquecimento por meio de apostas seja mais atraente para quem está em situação de vulnerabilidade financeira”. De fato, os jogos de azar, como as apostas em “bets”, são frequentemente apresentados como uma oportunidade para “mudança de vida” de forma rápida e sem esforço, oferecendo aos apostadores promessas ilusórias de ganho fácil. Para indivíduos que vivem na pobreza – sobretudo na pobreza extrema –, esse apelo é ainda mais sedutor.
Em nome do melhor interesse público, qual seja, o bem-estar geral dos brasileiros, em especial os mais desvalidos, não se pode simplesmente ignorar o grave problema do avanço das “bets” no País sob qualquer pretexto. Muito menos sob a cínica e cruel desculpa veiculada pelos defensores da jogatina segundo a qual a regulação das apostas online geraria uma arrecadação que pode se converter em investimentos em áreas mais nobres da administração pública. Acredita nessa patranha quem quer. Economistas consultados pelo Estadão/Broadcast estimam que o montante a ser arrecadado com a eventual regulação das “bets” em 2025 deve ficar entre R$ 2 bilhões e R$ 10 bilhões – uma ninharia em face de um Orçamento da União que prevê uma receita primária total de R$ 2,7 trilhões.
Não bastasse esse drama social, algumas “bets”, como é notório, têm sido convertidas em usinas de lavagem de dinheiro ilícito no Brasil, sem falar em outros crimes que quase sempre vêm associados à exploração dos jogos de azar, como corrupção, organização criminosa e até crimes de sangue – como a guerra pela ocupação de postos de jogo do bicho e máquinas caça-níqueis. Em um país onde vivem milhões de cidadãos carentes de quase tudo para uma vida digna, definitivamente, não há lugar para a legalização dos jogos de azar, sejam quais forem as suas modalidades.
Vivêssemos em um país mais decente, a esperança dos brasileiros desvalidos por um futuro melhor haveria de vir de um Estado genuinamente preocupado com eles, não de uma armadilha que só fará aprofundar sua miséria.