O Brasil não precisaria escolher nenhum lado nas disputas geopolíticas e econômicas da China e da Rússia com o Ocidente. Mas Lula escolheu, e o País só tem perdido com essa aposta
Na quarta-feira, o presidente Lula da Silva conversou por telefone com o presidente russo, Vladimir Putin. Na pauta, a guerra na Ucrânia e a cúpula do Brics, que acontecerá na Rússia em outubro. A atitude do brasileiro no bate-papo encapsulou a doutrina de Celso Amorim, o chanceler de facto que dita os rumos de sua política externa.
Lula discutiu a proposta do Brasil e da China para o fim da guerra. Trocando em miúdos, o Brasil propõe congelar as linhas territoriais atuais, entregando à Rússia 20% do território ucraniano sem nem sequer sugerir garantias concretas de segurança que não a boa-fé de Putin. Basicamente, o mesmo que se fez em 2014 com a Crimeia, à época com o endosso do Ocidente. Não há nenhum motivo para esperar que desta vez os desdobramentos seriam diferentes, e a proposta até soaria ingênua se Lula não soubesse disso.
Em tese, o Brasil reprova a agressão da Rússia. Na prática, é contrário aos meios que o agredido tem para se defender: as armas e as sanções de seus aliados ocidentais. Com mais de dois anos de conflito, longe de buscar alternativas às importações de fertilizantes e do diesel russos, Lula estimula sua expansão, ajudando a financiar o imperialismo de Putin. Sua proposta para o “fim” da guerra – a capitulação da Ucrânia – levaria em breve ao seu recomeço não só na Ucrânia, mas em outros países na mira do Kremlin, e afronta princípios da política externa nacional consagrados na Constituição: a autodeterminação dos povos e a prevalência dos direitos humanos e do direito internacional.
Não se tem detalhes das tratativas sobre a pauta dos Brics. Mas o governo tem sido conivente, para não dizer cúmplice, com a estratégia chinesa e russa de metamorfosear o que deveria ser um fórum econômico de grandes países emergentes em um clube autocrático antiocidental. Eis o núcleo duro da doutrina Amorim: um antiocidentalismo sob o qual não só a democracia, como já disse Lula, é “relativa”, mas relativos são até os ideais da esquerda. Os regimes de Putin e da teocracia do Irã – que o governo recebeu de braços abertos no Brics – são ultrarreacionários.
Se na era da globalização já era difícil para uma potência regional média, sem o poder das armas ou do dinheiro, como o Brasil, exercer seu soft power, tanto mais agora num momento de fragmentações e turbulências geopolíticas. Ainda assim, o País tem um aparato diplomático requintado, um histórico pacífico e recursos cruciais para que o mundo enfrente os grandes desafios globais da segurança alimentar, energética e ambiental. Esses ativos poderiam garantir ao País uma posição segura de equidistância e independência nos conflitos geopolíticos, e até de liderança em certos âmbitos, como na América Latina e na área ambiental.
É difícil para qualquer país se equilibrar no confronto entre EUA e China. O Brasil depende das exportações para a Ásia, mas também de insumos tecnológicos do Ocidente. Nem por isso o País precisaria renunciar aos valores comuns ao Ocidente, como a democracia liberal ou os direitos humanos, nem ser obrigado a escolher entre um lado e outro – vale lembrar que o maior parceiro comercial dos EUA é a China e vice-versa. A Índia tem logrado esse equilíbrio. Mas o Brasil de Lula escolhe um lado.
No início de seu mandato, a revista The Economist classificou sua política externa como oscilante e inconsistente: “Lula quer que o Brasil seja todas as coisas para todos: um amigo do Ocidente e um líder do Sul Global, um defensor do meio ambiente e uma potência petrolífera mundial, um promotor da paz e um amparo para os autocratas”. Quem dera. Se alguém tem dificuldade de enxergar as reais intenções de Lula por trás de suas conjurações ilusionistas, deveria conferir os posicionamentos oficiais do PT e de seu ideólogo Celso Amorim a propósito desses aparentes dilemas. Não há ambiguidade. Lula sabe o que quer e tem agido com coerência nesse sentido. Mas em troca da desconfiança dos parceiros ocidentais do Brasil, na melhor das hipóteses, e do seu escárnio, na pior, o País ainda não ganhou nada além do prato de lentilhas sino-russo.