O que havia, antes da eleição, era a vontade de impedir sua realização com o temor de que os “socialistas” voltassem ao poder. O que houve, depois da eleição, foi a tentativa de impedir que a vontade popular se concretizasse.
Em um país disfuncional como o Brasil, é possível confundir ações legais com ilegais, desde que se queira. Todo presidente da República eleito democraticamente tem a seu dispor uma série de medidas constitucionais a ser usadas em defesa do Estado Democrático de Direito. Portanto um presidente, como Bolsonaro era, discutir com assessores a adoção de medidas abrangidas pelo Estado de Emergência estaria perfeitamente dentro da lei.
Os próximos passos teriam de ser dados convocando o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitando depois a permissão do Congresso, no caso de Estado de Sítio, ou a ratificação, no caso do Estado de Defesa, o que não aconteceu. Graças às trapalhadas do Exército de Brancaleone, porém, sabemos hoje que não havia nenhuma razão prevista na Constituição para que se pensasse numa solução de força para impedir a eleição de 2022 ou a permanência de Lula como sucessor de Bolsonaro depois da vitória em segundo turno.
O que havia, antes da eleição, era a vontade de impedir sua realização com o temor de que os “socialistas” voltassem ao poder. O que houve, depois da eleição, foi a tentativa de impedir que a vontade popular se concretizasse, tumultuando a diplomação e, posteriormente, o putsch de 8 de janeiro — segundo o dicionário político, tentativa de golpe em conspiração secreta. Que, vê-se agora, não teve nada de secreto.
Em mensagens trocadas entre os conspiradores, em que a hierarquia militar foi quebrada, nada se encontrou que comprovasse a possibilidade de fraude nas urnas eletrônicas. Pela boca do presidente da República, ficamos sabendo que a participação dos militares no Conselho do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para assessoria da votação eletrônica serviu para que o governo tentasse provar, a qualquer custo, que haveria fraude eleitoral, boicotando internamente uma comissão para a qual a instituição fora convidada de boa-fé.
Nada foi encontrado, segundo os próprios golpistas. O constitucionalista Gustavo Binenbojm define com a simplicidade dos fatos a justificativa dos bolsonaristas, ao alegar que também a então presidente petista Dilma Rousseff mandou consultar os militares sobre a possibilidade de decretar Estado de Emergência devido ao processo de seu impeachment no Congresso:
— A comparação dos bolsonaristas com a “consulta” da Dilma na época do impeachment parece confirmar a tentativa de uso do Estado de Defesa ou Estado de Sítio para atentar contra a democracia. No caso da Dilma, para evitar o processo de impeachment e não sair do poder. No caso de Bolsonaro, para evitar a posse do presidente eleito e não sair do poder. Dois erros não fazem um acerto. São apenas dois erros.
Tem sido comum na parte de baixo do Equador o uso de instrumentos democráticos para fragilizar a própria democracia. Controlar os tribunais superiores, aumentando ou reduzindo seus integrantes de acordo com a conveniência do momento; alterar os mecanismos eleitorais para facilitar a vitória deste ou daquele partido; prisões aparentemente legais para impedir que um postulante concorra. Todas as instituições continuam funcionando aparentemente, mas são feridas em sua própria autonomia.
São as distorções do que seja “democracia”. A postura dos militares como instituição diante da tentativa de golpe é exemplar desse simulacro de comportamento republicano. Mesmo sem aderir ao movimento, a obrigação de qualquer uma daquelas autoridades presentes na reunião ministerial em que se discutiu “virar a mesa” era denunciar. Ou renunciar ao cargo.
O Alto-Comando militar não aderiu, mas sabia o que estava acontecendo. A proteção aos acampamentos às portas dos quartéis pelo país e a sustentação do esquema de logística para sua manutenção estão diretamente ligadas aos militares, e foi daquele “ovo da serpente” que saiu a tentativa de golpe de 8 de janeiro.
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