Qin Gang sumiu após trilhar carreira meteórica no governo; especulações apontam caso com apresentadora de TV chinesa, também desaparecida, e até suposto esquema de espionagem
Ao longo de quase oito meses, diplomatas de todo o mundo têm se intrigado com o súbito desaparecimento e demissão do ex-ministro de Relações Exteriores chinês Qin Gang. Observadores da China expressaram muita especulação, mas Pequim não disse nada oficialmente, e nem mesmo a CIA sabe ao certo o que aconteceu.
Teorias sobre a destituição de Qin rondaram seu relacionamento com uma jornalista de TV chinesa chamada Fu Xiaotian. Qin, apesar de casado com outra mulher, foi ligado publicamente a Fu depois que ela teve um filho de um pai não identificado por meio de uma mãe de aluguel americana em 2022, pouco antes dele retornar de seu posto de embaixador em Washington. Isso criou uma tempestade na rede social chinesa. Mas terá sido suficiente para demolir a carreira do ex-chanceler?
Qin provocava amplo ressentimento entre seus colegas por ter ascendido tão rapidamente na chancelaria, afirmam autoridades americanas. Ele era visto como favorito do presidente chinês, Xi Jinping, a quem havia servido como chefe de protocolo, o que causava incômodos entre colegas e produziu o que uma autoridade americana classifica como uma “briga sangrenta” com seu antecessor, Wang Yi, que agora coordena toda a política externa. Mas esses ressentimentos também não explicam a queda catastrófica de Qin.
As teorias mais provocadoras envolvem especulações de que Fu era agente de um serviço de inteligência exterior e que sua espionagem comprometeu Qin. Um diplomata americano disse-me ter escutado que Qin era agente da Rússia. Nenhuma, afirmou uma ex-autoridade americana com trato antigo e duradouro com Pequim, autoridade chinesa acredita que Fu serviu como agente do Reino Unido por mais de uma década. As histórias de espionagem são saborosas, mas eu não consegui confirmar nenhuma.
Restou-nos um mistério que sublinha a magnitude da opacidade que persiste no Estado chinês monopartidário e da dificuldade que a CIA, provavelmente o melhor serviço de inteligência do mundo, enfrenta para penetrar seus muros de sigilo. “Nós investigamos em toda a parte o que aconteceu com Qin, mas é como se ele tivesse desaparecido, com a cara apagada da foto como nos tempos de Stálin na União Soviética”, afirmou uma autoridade do governo Biden que acompanha proximamente os acontecimentos na China.
“Não temos nenhuma informação relevante para oferecer”, afirmou um porta-voz da Embaixada Chinesa quando questionado sobre o desaparecimento de Qin e os rumores de espionagem. Um porta-voz da CIA também se recusou a comentar. Assim como um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido.
Visto em público pela última vez em 25 de junho, Qin foi removido oficialmente da função um mês depois. Curiosamente, o vice-ministro russo de Relações Exteriores, Andrei Rudenko, visitava Pequim naquele mesmo dia, para reuniões de alto nível.
Rudenko traria consigo provas de que Qin estava imiscuído? Essa é a versão relatada pela ex-autoridade americana. A fonte afirmou que o Serviço Federal de Segurança da Rússia havia alertado previamente o ministério chinês de Segurança do Estado que Fu era agente do Serviço Secreto de Inteligência do Reino Unido. Mas o ministério chinês estava relutante em se movimentar contra o ex-chanceler sem evidências “sólidas”, explicou a ex-autoridade americana.
Reportagens especularam por meses que Fu poderia ser espiã, algumas sugerindo que os britânicos poderiam tê-la recrutado. O governo Biden ouviu esses rumores e pressionou tanto a CIA quanto o Reino Unido a respeito, mas sem obter nenhuma confirmação, afirmou a alta autoridade.
Seja qual tenha sido o motivo, Qin, de 57 anos, foi preso e investigado logo após desaparecer em junho, afirmou a alta autoridade do governo. Em uma versão relatada pela ex-autoridade americana, o ex-chanceler não sabia nada a respeito das supostas relações de espionagem de sua amante e tentou se suicidar ao ser confrontado com a informação. De acordo com esse relato, Qin foi hospitalizado numa instalação especial, destinada a autoridades militares e políticas chinesas, concedida como “Hospital 301″. A reportagem não conseguiu confirmar esse relato independentemente.
Fu, de 40 anos, também desapareceu e é quase certo que ela foi detida e é mantida presa. Como Qin, Fu teve uma ascensão meteórica, tornando-se apresentadora-celebridade do programa “Conversa com Líderes Mundiais”, da estatal Phoenix TV, até ser demitida em 2022. Naquele ano, uma mãe de aluguel deu à luz o filho de Fu, Er-Kin, nos Estados Unidos.
A malfadada relação entre Qin e Fu começou por volta de 2010, no Reino Unido, de acordo com o Financial Times, quando ambos trabalhavam no país. Fu, nascida na cidade de Chongqing, obteve mestrado na Faculdade Churchill, de Cambridge, em 2007, e foi contratada pela empresa de mídia Phoenix. Qin tinha servido em Londres como diplomata-júnior de 1995 a 1999 e fora designado à capital britânica pela segunda vez, como conselheiro do ministro, entre 2010 e 2011, de acordo com sua biografia oficial no Ministério de Relações Exteriores, provavelmente quando conheceu Fu.
Qin ascendeu rapidamente ao retornar para Pequim, em 2011, após seu segundo período em Londres, servindo como porta-voz da chancelaria por três anos e então, até 2017, como diretor de protocolo do ministério, onde foi responsável por organizar as viagens de Xi. Nessa função, de acordo com autoridades e ex-autoridades americanas, Qin desenvolveu relações próximas com o presidente chinês.
Essa relação cálida teve auxílio da mulher de Qin, Lin Yan, que se tornou amiga da mulher de Xi, Peng Liyuan. Segundo a alta autoridade do governo, a mulher de Qin fazia bolos lunares para a mulher de Xi, como se ela fosse da família. A intimidade de Qin com a família de Xi provavelmente o ajudou a saltar degraus da escada de promoção normal na China e ascender ao cargo de ministro de Relações Exteriores com relativamente pouca idade. Essa rápida ascensão fomentou ressentimentos entre seus colegas na chancelaria.
“A subserviência de Qin em relação a Xi foi uma afronta à rígida hierarquia cultivada pelo fundador do Ministério das Relações Exteriores, Zhou Enlai”, explicou o ex-analista sênior de China da CIA Christopher Johnson, que atualmente dirige a firma de consultoria de risco político China Strategies Group. “O ruído resultante deixou diplomatas chineses divididos e distraídos, conforme Xi pressionava com mais força para que o Partido Comunista usurpasse a função da chancelaria na formulação da política externa.”
Conforme Qin ascendeu, seu suposto romance com Fu teria configurado um problema para qualquer serviço de inteligência exterior que tivesse contato com ela. Serviços de espionagem gostam de ter agentes bem colocados, mas não em lugares tão proeminentes ao ponto de causar reverberações. O perigo de recrutar agentes que eventualmente ascendem a posições altaneiras me foi descrito por uma fonte da CIA, décadas atrás, como “o problema do primeiro-ministro”. Mas, novamente, não há prova de que isso fosse um problema para Qin.
A posição de Fu tornou-se embaraçosa após Qin regressar para a China no início de 2023 para assumir como ministro das Relações Exteriores. Fu começou a postar referências em redes sociais chinesas e ocidentais ao seu bebê, que ela descreveu como “o precioso filho Er-Kin” em um tuíte, em abril do ano passado, conforme voava pela última vez dos EUA para a China. Fu havia postado no mês anterior que o pai do bebê não era americano e, próximo ao aniversário de Qin, em 19 de março, postou uma felicitação para o pai anônimo que aniversariava, de acordo com o Financial Times.
Um mistério que persiste nesta história é a coincidência — ou não — da visita do diplomata russo a Pequim no mesmo dia em que o ex-chanceler chinês foi visto pela última vez. Seja qual for o dado de inteligência que Rudenko possa ter trazido, sua missão mais profunda foi provavelmente recordar Xi a respeito da perseverança russa. No dia anterior, o líder mercenário renegado Ievgeni Prigozhin tinha ordenado que seu exército marchasse na direção de Moscou — abalando momentaneamente o Kremlin. Apesar da revolta de Prigozhin ter sido esmagada, e dele ter morrido dois meses depois em um misterioso desastre de avião, Putin teria querido recordar Xi rapidamente de que estava no controle.
A principal lição que depreendo é que a Rússia não é a desafortunada parceira menor que parece em sua relação com Pequim. A China de Xi pode ter cada vez mais riqueza e poder, mas Putin segue sendo um mestre da inteligência e da manipulação política. “Putin é um oficial de espionagem”, observou a autoridade do governo.
A queda do ex-chanceler e da ex-celebridade da TV nos recorda finalmente que até mesmo em um Estado rígido e monopartidário como a China a vida política ainda é capaz de mostrar-se hostil às fragilidades individuais mais humanas. E serve de alerta, também, a respeito da dificuldade de se perscrutar os segredos em torno da liderança chinesa. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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