É imperativo para a nação não esquecer o que foi o governo Jair Messias Bolsonaro. Esquecer seria o caminho mais fácil, trágico e ruinoso
Passou a ser fácil compor o retrato-síntese dos quatro anos de governo do 38º presidente da República Federativa do Brasil. Para adeptos de uma historiografia-relâmpago, basta analisar dois vídeos. Está tudo lá, escancarado. Um é de 22 de abril de 2020, o segundo data de 5 de julho de 2022.
O primeiro mostra a fatídica reunião ministerial do início de governo, em que um ruinoso elenco de comandados compete para se mostrar o mais obsequioso possível. Abraham Weintraub, ministro da Educação, sugeriu que ministros do STF deveriam ser presos; Ricardo Salles, do Meio Ambiente, defendeu “passar a boiada”; Paulo Guedes propôs “vender logo essa porra”, em referência ao Banco do Brasil; Damares Alves, titular da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, tampouco decepcionou o chefe. Mas foi ele, Jair Bolsonaro, que naquele dia fincou as estacas do seu mandato: precisava de um “sistema particular de informações” e de uma Polícia Federal para chamar de sua. Convém não esquecer.
O segundo vídeo, revelado nesta semana, retrata reunião da alta cúpula bolsonarista ainda mais fatídica. Faltavam então apenas três meses para Bolsonaro tentar a reeleição, e as pesquisas não lhe eram favoráveis. Estava impaciente, ansioso, com o palavreado chulo à solta. Entre os subordinados convocados pelo ex-capitão que décadas antes quase fora expulso do Exército, estavam generais, coronéis e o primeiro escalão de seu governo. Tinham em comum, segundo a investigação em curso na Polícia Federal, o planejamento de uma “dinâmica golpista”. A galope.
Os ministros da Justiça, da Defesa, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), da Secretaria-Geral, o ex-chefe da Casa Civil — todos entrementes investigados e submetidos a mandados de busca e apreensão — discorreram sobre formas de desautorizar a Justiça Eleitoral e impedir a derrota nas urnas. De que forma? Na versão caserna proposta pelo general Augusto Heleno, cavernosa figura à frente do GSI, “se tiver que virar a mesa, é antes das eleições”. O temor maior — o que ocorreria com os golpistas da sala em caso de vitória do PT de Lula — foi abordado de forma enfática pelo então ministro da Justiça, Anderson Torres: “Senhores, todos vão se foder! Eu quero deixar bem claro isso. (…) Eu quero que cada um pense no que pode fazer previamente porque todos vão se foder”. Pensaram, fizeram — antes, durante e depois das eleições, até o ato insurrecional do 8 de Janeiro, com o conjunto da obra agora sendo esmiuçado pela Polícia Federal que Bolsonaro ambicionara ter para si.
“Eu tenho três alternativas para o meu futuro — estar preso, ser morto ou a vitória”, garantira ele a líderes evangélicos de Goiânia em agosto de 2021. Acrescentou que a primeira alternativa simplesmente não existia: “Nenhum homem aqui na terra vai me amedrontar”. Àquela altura, os alvos ainda estavam invertidos. Era o ninho conspiratório do próprio presidente que cogitava prender o ministro do STF Alexandre de Moraes como complemento à ruptura institucional. Justamente o “Xandão”, que hoje está à frente da pantagruélica investigação dos atos golpistas.
A operação desencadeada nesta semana foi fulminante — um dos militares alvo de busca e apreensão chegou a passar mal ao ver a Federal à sua porta. Bolsonaro cessou de rugir. Contactado em sua casa de veraneio na Costa Verde, repetiu o bordão final de outro ex-presidente militar do Brasil, João Baptista Figueiredo. “Me esqueçam, já tem outro governando o país”, disse à colunista da Folha Mônica Bergamo.
O ex-presidente que envergonhou e lanhou o país não merece esse privilégio. À parte os desdobramentos e conclusões dos inquéritos em curso, é imperativo para a nação não esquecer o que foi o governo de Jair Messias Bolsonaro, sua cruel responsabilidade em nosso desamparo diante da pandemia de Covid-19, seu desdém criminoso por nossa diversidade, nosso meio ambiente, nosso futuro como sociedade possível. Esquecer seria o caminho mais fácil, trágico e ruinoso. Já foi feito uma vez com a ditadura militar e continua a ser tentado. Em caso de dúvida, recomenda-se pensar numa pergunta simples antes de ceder à comodidade do esquecimento: que tipo de sociedade seríamos se o suposto golpe dos Jaíres, Augustos Helenos, Bragas Nettos e comparsas tivesse dado certo? Pensar é preciso. Lembrar também. A isso não se dá o nome de revanche — é honrar a memória nacional.
Por Dorrit Harazim, Jornalista e documentarista
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